domingo, setembro 26

Café e freshmint

Segunda-feira, dia novo, semana nova. Quase todos os dias, a mesma parada de quinze, vinte, vinte e cinco minutos no mesmo banco da estação do metrô. Os mesmo minutos, sendo que o meu relógio está sempre cinco minutos adiantado frente à hora oficial e conseqüentemente ao relógio da estação – o que me ilude em haver um pouco a mais de tempo. Depois, seis horas de sem-consciência, seis e meia até sete, prolongam-se em infinito torpor e escuridão, no ninho das águas do sistema financeiro, alto baluarte do sistema financeiro e suas falhas hediondas. Paciência. Todo dia é uma guerra, uma nova guerra a cada aurora; já que assim optou a humana grei, o debater-se todo dia, alheio a tudo quanto realmente importa a nós, humanos; como a voz estúpida da funcionária do metrô que ecoa pela estação, propagada pelos alto-falantes para que um funcionário estúpido compareça a algum lugar igualmente estúpido.
No banco, tivemos mais uma edição das jornadas dos «bolos administrativos»; consistindo na comemoração da efeméride de nascimento de algum dos funcionários. Esta segunda foi a vez de Soline; bolo, parabéns e um presente dado e pago com contribuições dos outros funcionários. Realmente, uma «torta amministrativa».
Antes do bolo, procurava eu, no armário branco do banco, certos contractos de empréstimo que deveriam ter consigo umas tais guias de pagamento, relativas a umas merrecas, diferenças unitárias, decimais e centesimais de juros descontados indevidamente. Nesse meio tempo, o banco já havia fechado a porta e sentado na poltrona vermelha, tinha em minhas mãos o último contracto que deveria procurar; quando me tomou o maldito ímpeto. Afinal, estava eu a centímetros da garrafa térmica: servi-me dum copinho de plástico e pelo botão da garrafa, fazendo o jogo de pressão, aumentando a sua pressão interna, fiz com que se enchesse o copo com alguns milímetros de café.
Mui bem, mas quando fui aproximá-lo da boca, não sei que diabo fez uma das minhas mãos esquerdas (certo que são ambas esquerdas), que o café fugiu do copo, precipitando-se primeiramente sobre o contracto sobre o meu colo, e logo após, para completar dignamente seu papel de agente emporcalhador, escorreu sobre minha camisa e minha calça, quase sobre a junção da perna esquerda com o tronco e na camisa sobre o umbigo. Fora a poltrona, e fora a pasta que continha alguns-outros contractos, que estava sobre a perna direita.
Bem, o atestado de idiotice já me outorgara há tempos; mas não posso torná-lo público. Daí a criação duma «estorieta complementar e provisória», vulgo mentira. O mais difícil não é criar a estória em si e camuflar o facto ou omitir-lhe detalhes; mas sim ter de dar corpo e verossimilhança a ela.
Nisso, a minha mente doentia é primaz. Há factos passados que deturpei de tal modo que não me lembro realmente o que aconteceu. Creio que tenha sido o ministro da Propaganda do regímen nazista (era o Goebbels?) que disse: «uma mentira dita mil vezes torna-se verdadeira».

A gente (1) pensa pouco com o cérebro e pouco com o coração. O desenvolver-se do pensamento deveria equilibrar-se entre razão e emoção. Cinqüenta-por-cento cada um. O que se vê, inclusive eu-próprio cá me incluo e acuso-me: talvez nove décimos do pensamento sejam factores alheios e o resto de coração, daí as desilusões e desgostos. Quanto aos 90% diversificados, cada um vai à sua maneira: imagino que os «ratos de academia» raciocinem (o pouco que o fazem) com a batata-da-perna, com o bíceps torneado ou com o abdômen esculpido; os famintos pensam majoritariamente com o estômago; os que não têm dinheiro pensam com um acessório: o bolso vazio de suas calças. Os velhos pensam pelas suas bengalas; e o homem médio – desse tipo que vemos por aí, pelos lugares comuns – esse pensa prioritariamente com a genitália. Os burocratas pensam pelos seus carimbos ou pelos seus velhos crachás, os juízes pelas suas togas ou perucas (o que se lhes assentar melhor), alguns-outros pensam ainda pelos seus piercings, suas bolsas caras ou pelas garrafas de vinho caríssimas e amargas que tomarão um dia.

Esta semana, houve, também por uma minha efeméride das minhas vinte e três primaveras, um livroncelo que me fez pensar melhor…

Como quase todos os dias, ao pagar o almoço no restaurante do Hospital, pego sempre pego também uma embalagem de coma de mascar. Sempre a pego variegando, um dia hortelã, outro morango, aqueloutro uva e assim vai. Certa jornada, ao olhar para a caixinha onde ficam arrumadas as embalagens, chamou-me a atenção umas embalagens que se destacavam pela sua cor azul-celeste; pegando-a na mão, no lugar do desenho da fruta à qual corresponde o sabor, havia o desenho de uma cadeia de montanhas nevadas, tal-qualmente os Alpes ou os Andes; brinquei com o caixa:
— Afinal que sabor é este?
Ele deu de ombros e fez uma careta entortando a boca para baixo.
— Será que é de montanha? – rebati – Afinal, tem umas montãinhas cá impressas!
— He, he… - sorriu amarelo o pobre funcionário.
— Talvez seja sabor rocha…
A inscrição freshimint indicando o sabor não refresca lá muito. Sei que é inglês, mas o meu inglês é péssimo. Acabei ficando com uma embalagem e abandonando o recinto do restaurante por um corredor entre dois prédios de vinte andares, que dá a impressão de estar-se no fundo de um abismo, pus um dos cinco chicles da embalagem na boca. Um sabor assaz estranho.
— Mas que cazzo! que gosto de Vick Vaporub! – ecoou pelo imenso vão.
Voltei para o trabalho e depois do expediente, como todos os dias, dirigi-me à Faculdade. Durante uma aula de Literatura Nacional, ofereci um dos chicletes a André, que enquanto escrevia depositou-o do lado do caderno. Virei-me e ofereci um a Júlia.
— Hum! Isso tem gosto de Gelol! Não, obrigada.
André voltou-se alguns instantes depois, saindo do transe da leitura:
— Chiclete… é do que?
— Depende do seu paladar – respondi - , pode ser tanto de Vick Vaporub quanto de Gelol… se estiveres inspirado pode ser até que sintas gosto de Pinho Sol…


(1) «gente» nesse caso aplica-se como colectivo: «pessoas», «o povo».


domingo, setembro 19

O filme que Truffaut não fez.

(A lamentável história de François Vinard - primeira parte)
A primeira cena mostra um rapaz, magrela, branco descendo uma avenida que passou recentemente por uma reforma, está cheia de buracos. (continua a música que havia durante os créditos, uma suíte de piano sobre o hino da Albânia) Tapumes e redes de isolamento não conseguem segurar o pó levantado pelo tráfego dos automóveis, na verdade nem é essa sua função. A câmera o acompanha do canteiro central, sendo entrecortado a imagem por automóveis subindo no sentido oposto ao caminhar do protagonista; cada ônibus ou caminhão que passa levantando considerável nuvem de pó, este coloca a mão sobre o nariz.
Consigo, o protagonista leva uma bolsa à tiracolo (mais pesada que o próprio) e uma sacola de plástico duma livraria conhecida. Caminha titubeante em meio às crateras da calçada e os buracos cobertos com areia fofa, o que volta e meia o faz desequilibrar-se. Vem subindo a rua um homem de terno com uma máscara. O protagonista o olha estupefato, mas depois, pelos seus gestos, entende-se que afinal, ele concorda com a medida, o ar cada dia que passa está mais irrespirável, ainda mais nos grandes centros urbanos, nessas avenidas pulvurulentas.
Numa esquina, livra-se da avenida infernal e segue por um’outra transversal, passa diante dum muro de cemitério, sempre do mesmo jeito, com a bolsa e a sacola, andando a passos largos. Termina o muro do campo-santo, atravessa uma ruela e na seguinte dobra, desce mais uma vintena de metros. A rua é uma curva, extremamente escura. Aparentemente perdido, busca algo no bolso. Um papel. Consulta-o e olha adiante. Sim, ali está já o que ele procura, encravada entre duas casas, uma escada que dá acesso à rua de baixo. Chegando mais na ponta (agora a câmera o vê da parte de baixo da escada, tendo esta toda dentro do raio de visão), vê a degradação daquele pedaço de mundo, vandalizado, urinado e pichado. Desce os degraus de dois em dois. Quando está chegando quase ao final da escada, vem vindo para subir uma bela moça, que evidentemente não passa desapercebida pelo protagonista que volve o pescoço para, digamos, focalizá-la melhor, discretamente, é claro. O que lhe vale um encontrão contra um poste. No final da escada, tem uma rua que sai bem de frente. Essa é a rua do seu destino, agora somente lhe resta encontrar o número. Anda mais um pouco pela rua e pára diante dum bistrô.
Fica alguns instantes parado e logo entra. Ainda não havia ninguém. O ambiente é assaz pitoresco, flâmulas pelas paredes, fotografias, centenas de objetos curiosos, como um velho projector de filmes, um molho de mil chaves e outras coisas mais. Toca por alto-falantes uma música de acordeom. Sentados no fundo. Um homem e uma mulher, que aparentemente trabalham do local. O protagonista esquadrinha o ambiente atenciosamente e depois dum momento de estupefação indaga aos do local:
— Eu posso sentar-me ali fora? Eu estou esperando uns amigos que vêm para cá também…
(o casal do lugar se entreolha)
— Oui, pode sim.
O protagonista dá um meio-sorriso e um aceno de cabeça.
— Merci.
Já é noite e ele senta-se numa mesa externa, a aguardar. Passam-se quase quarenta minutos. Sentado na mesa, apóia a cabeça com as mãos. No meio tempo aparecem alguns vendedores (de chicletes, de meias) e um realejo. De improviso, chega a primeira pessoa, uma conhecida sua, argelina.
— Boa noite! Faz tempo que estás tu aí? – pergunta gentil a moça.
— Boa noite! É, vai já uma quarantena de minutos… mas senta-te! Tu vieste a pé?
— Sim, eu vim sim.
— Ah… e tu vieste por onde?
— Pela principal, ali embaixo (a moça indica com a mão).
— Acabaste dando um pouco de volta, não? Tu poderias ter vindo por ali… por trás, pela escada…
— Hum… eu não sabia…
A câmera os focaliza paralela à calçada e por esta se vê vindo mais um grupo de pessoas. São os esperados.
— Hou! Olá! como tendes vós passado?
(todos se cumprimentam com um certo alarido) Então, uma segunda moça propõe:
— É melhor que nós fiquemos lá dentro não?
(os outros concordam e ingressam) Tomam lugar numa mesa rústica de madeira e põe-se a conversar. Um deles é o aniversariante. Cumprimentam-no todos. O protagonista, tira da sacola um embrulho chato em papel amarelo.
— Espero que tu não repares… é somente uma lembrança, um recordo…
— Ha, ha! Parece-me um livro!
— É, tu bem o sabes que somente consigo presentear livros…
— Ah, mas tem coisa melhor que livro? Eu pessoalmente adoro ganhá-los!
— Mas veja aí se é do teu agrado…
(o aniversariante desfaz o pacote e olha para o livro continuamente)
— Mas que ótimo. Adorei! Olha, Catherine, o que eu ganhei.
— Très bien, Maurice! Mas que ótimo livro! François tem um bom gosto para livros…
— É somente o que eu sei dar – disse François, o protagonista – Minha mãe não agüenta mais ganhar livros, no Natal, no Ano-Novo, sempre livros.
(uma gargalhada geral)
Passa-se mais um tempo, no qual o aniversariante Maurice é presenteado ainda com uma bela jóia.
— Guarda, guarda! Mas que belo!
— Muito bela!
— Chic, très chic!
— Mas tu sabes que ela combinou contigo?!
François, pela sua natureza, mantém um ar um pouco distante, não por maldade, mas simplesmente por que assim é sua natureza, somente-só. Mais alguns minutos de diálogos genéricos e pedem alguns café e brioches. Chegam Aïda e sua prima. Cumprimentam todas as pessoas da mesa, novamente um grande alarido.
Aïda vai sentar-se na mesa do lado oposto àquele de François, entre Maurice e Catherine. Sua prima, Suzanne senta-se sim ao lado de François. Este mantém uma face, pouco amigável, mais por cansaço que por chatices. A câmera mostra um pouco os outros componentes da mesa e quando volta a François, ele está com uma conversa amarela com Suzanne. Apesar do seu mal-estar psicológico, procura ser simpático com a moça. Ele tem a plena consciência que as pessoas circunstantes não tem culpa.
— E então, como tu tens andado?
— É… com as pernas.
François abaixou os olhos em direção ao prato, visivelmente incomodado.
— Aaah…, conseguiu balbuciar François.
O alarido circundante continua no segundo plano.
— É… eu ainda não consigo plantar bananeira… andar com as mãos; mas estou treinando… - continuou seriamente Suzanne.
François não soube o que responder. Sorriu muito a contragosto e apertou os olhos por detrás dos óculos. Mordeu o lábio inferior.
— Ah, que bom… que bom… fazes-tu muito bem… beníssimo…
François abaixou novamente os olhos para um copo. Apesar do alarido d’entorno e da própria mesa, formou-se entre os dois um silêncio constrangedor, enquanto Suzanne continuava a mirá-lo, percebeu o que acontecera.
— Desculpe-me… foi um deslize…
— Não tem problema; escuto piores todo-santo-dia. – Completou François à meia-voz.
Daquele momento em diante, mostrou-se na mesa reticente, o que foi confundido com siso absurdo.
— Estás muito sério… para que toda essa seriedade, sorria um pouco. – Falou-lhe a cert’altura Suzanne.
— Não é seriedade; é tão-somente cansaço… - respondeu num sorriso mais-que-amarelo.
Para vir embora, cumprimentaram-se todos. A cena mostra François cumprimentando Maurice.
— Até mais, Maurice. E feliz-aniversário!
Abraçam-se.
Ele vem de carona com Catherine. No carro vem também Ismène, no banco traseiro. Catherine os deixa numa estação do Metropolitano. (câmera vendo de longe) Despedem-se; Ismène desce junto, mas pegará um ônibus. François sobe sozinho a escada rolante da estação; mastigando a estupidez das suas ações, das suas palavras incautas. Põe o bilhete no bloqueio e desce para a plataforma. A câmera o focaliza de pé na plataforma, arqueado e com uma cara extenuada. Chega o trem, ele entra e senta-se. A câmera acompanha dum ponto fixo, girando, o trem saindo da estação.


Aos meus queridos amigos discípulos de Bananère

Fiquei muito contente com a vossa mensagem. Talvez nem o próprio Bananère consiguiria tamanha façanha. E para saldar a vossa curiosidade, meto aqui um enlace para a famosa música do hit-parade fascista, Giovinezza http://www.ilduce.net/Fascismo/Giovinezza.mp3

Tanti saluti.

domingo, setembro 12

Mesários do mundo, uni-vos!

Mais uma vez, a Justiça Eleitoral reclama os meus imprescindíveis serviços. Agradecem por você responder a comunicação, como se você tivesse ido lá por pura e simples expontaneidade; sendo que nos mandam para casa uma cartinha bem autoritária e mal-educada. Se você não vai, xadrez! Hoje de manhã, ousseja (gostaram dessa junção? eu particularmente adorei) domingo, nove da matina, dum dia onipluvioso e pleniventoso, saí co meu guarda-chuva e meu walkman. Antes de chegar no ponto, quase que entrei em órbita, visto que o meu já supracitado guarda-chuva virou uma antena parabólica.
No cartório, as mesmas lenga-lengas de sempre. Um filmeco estúpido, com atores estúpidos, eu cercado de seres estúpidos como eu, outros mesários e obtusos funcionários de cartório eleitoral. Os tentáculos burocráticos não descansam nem aos domingos e atacaram suas ventosas contra os mesariosinhos, que poderiam estar quentinhos nas suas caminhas. Pelo menos tinha um cafezinho, meio água-de-batata, mas melhor que nada.
Eu particularmente esperava novidades para esse ano, como por exemplo, que pudéssemos importunar os eleitores bêbados com perguntas do tipo «se aqui nevasse haveria esqui?» (nota: para quem não conhece a brincadeira, essa frase se dita muito rapidamente soa algo como «sequinevássaviasquis», ou seja, incompreensível), ou ainda «em setembro chove» (idem nota anterior, só que aqui o efeito é mais engraçado: «’cê tem brochov?» parece até russo!) ou se «você conhece o Mário?»; talvez pudéssemos esmurrar os eleitores que tivessem esquecido os títulos; usar nariz de palhaço, sei lá... qualquer mudança. Mas não, nada de novo sob a chuva/
Pois é, o mundo não acabou de sábado para domingo e quem arca com as conseqüências somos nós.

l’undici settembre

Passou-se o sábado e simplesmente esqueci-me da memorável data, o 11 de setembro. Morreu gente que nada tinha a ver com o peixe? Sim, morreu, infelizmente. Mas que foi interessante ver aquilo foi. Creio que nós, latinos tropicais temos a contar somente nossas vivências diversas de quando soubemos da notícia, e como vivente à época, tenho cá também o meu recordo.

11 setembro 2001

(fará mais sentido se o leitor procurar no Kazaa ou algum outro congênere a música «Girotondo» de Fabrizio de Andrè; sei que já encheu as paciências as recorrências a De André, mas nada é mais aproriado... é donde são os trechos entre chaves)

[ se verrà la guerra, marcondirond’ero... chi ci aiuterà?]

Numa sala comprida, três fileiras de mesas, divididas em baias por chapas de eucatex (madito Maluf! até aqui entra a droga do eucatex!); em cada uma delas um computador e um fulano diante dele, trabalhando com complicados desenhos de plantas de telecomunicações - um trabalho assaz maçante, vos digo. Na sala, somente o chato tec-tec dos teclados, caras emburradas. Fora, um raro sol de setembro dava as caras, aumentando a raiva dentro, fazendo o gado sonhar com praias e veraneios.
Eu, parte do gado também, ruminava na minha baia, com o meu inseparável rádio portátil na orelha - com fones, naturalmente. Escutava eu uma dessas emissoras de notícias 24 horas por dia, não lembro se era a CBN ou a Eldorado.

[l’aeroplano vola, marcondirond’ero... la bomba è già caduta, chi la prenderà?]

De improviso, anunciou-se, cortando um comercial, que um avião havia atingido uma das torres do World Trade Center. «Um daqueles aviãozecos... jatinhos... de algum empresário... por certo o piloto era bêbado», pensei cos meus botões. Algunhoutro ouvia também o noticiário.
- Berne! (esse era o meu apelido no antro) ’Cê viu? Bateu um avião no Trade Center!
- Pilotos bêbados... empresários não deveriam ter jatinhos...
- Não, parece que foi um avião de passageiros.
- Sério?
Começou a ficar preocupante.
- Perece que foi um acidente feio...
O rapaz voltou à sua mesa. Mais alguns minutos, outro avião choca-se com a outra torre do complexo, o rádio anuncia.
- Outro avião. É guerra! - veio o beligerante desenhista CAD.
- Não, não deve ser... acidentes ocorrem... - poderei.
- Louco! Minutos depois? Impossível!

[siam grandi o siam piccini, li distruggerà, siam furbi o siam cretini, li fulminerà]

Mais alguns minutos vieram o choque doutro jato comercial contra o Pentágono e outro que fora alvejado e caiu num deserto. Parece que tinha como alvo a Casa Branca. A essa altura, o escritório todo era em polvorosa. Nem a nossa chefe pensava mais, todos comentavam dos ocorridos. Ligou-se um rádio grande que havia, não precisei mais usar os fones.
Eu fazia planos absurdos.
- Hum... decerto essa merda toda vai chegar aqui também... precisamos plantar... faltarão gêneros essenciais! E as bombas, e as bombas?
[la terra è tutta nostra, marcondirond’ero... giocherem a far la guerra, marcondirond’a]
E assim, no «giocherem a far la guerra», enquanto eu descia a rampa da estação de Artur Alvim, já quase noite e com um céu nublado e dum azul quase cobalto, escutava pelo rádio que começaram os bombardeios a Kabul.

Kyrie eleïson

«proprio nel giorno in cui, / la decisione è mia / sulla condanna a morte / o la amnistia.» (F. De Andrè)

Acordamos hoje eu e meu inseparável mau-humor. Mesmo sendo sábado e tendo sido esperado durante toda semana esse sábado, o prenúncio da segunda-feira ventura já é suficiente para azedá-lo. E ficar em casa tem seus preços; um deles é acompanhar minha querida genitora ao supermercado, ao maldito supermercado, cheio de gente parada diante das gôndolas, o braço estendido segurando uma lata de sardinhas ou molho de tomate para poder ler componentes químicos totalmente abstratos, que acreditam que sejam a esses consumidores totalmente desconhecidos; tanto faria se estivesse escrito em português ou em grego, aquela enxurrada de nitratos, bicarbonatos, sulfatos e congêneres.
Fazendo a semanal via-crúcis, jogando o carrinho sobre aqueles que ficam estáticos diante dos produtos, como se embasbacados e soltando após um cínico «me desculpe», ao improviso, vi uma imagem que me gelou a alma. Com fardos de papel-higiênico, de embalagem verde (aromatizado a maça-verde), amarelo (pêssego) e azul (não sei se há alguma fruta azul), fizeram um imenso mosaico simulando a bandeira nacional. Tive de olhar novamente; não é possível, troquei os óculos ontem! Tirei-os e inspecionei-os, tudo em ordem. Recoloquei-os diante dos olhos e saltou-me à face aquele espetáculo horrendo: a bandeira feita de papel-higiênico e pais embaixo apontando para os filhos: «olha, ’tá vendo? Igual àquela que a gente uso’ na Copa, lembra, filho?».
— Vamos embora já, mãe! Não posso ficar aqui dentro nem mais um minuto com esse povo infecto.
Digamos que essa última frase eu a tenha pronunciado um pouco alto demais, a ponto de chamar a atenção dos circunstantes.
— Cal’a boca!
— Se não bastassem as calhordices qu’eu agüento naquele antro a semana toda, no final de semana ainda so’ obrigado a ver um… um… um negócio desse?!
— Fica quïeto, energúmeno – atalhou amavelmente a minha mãe – já tem gente olhando…
E eu, no alto dos meus vinte-dois, quase vinte-três anos ameacei masculamente:
— Ou nós vamos, ou eu canto Giovinezza!
— Que?! Fico’ louco, menino?
— Giovine-ezza, giovine-ezza, primavera di bele-e-e-ezza…
Alguns olhares tortos das pessoas mais próximas, mas certamente não sabiam o que ouviam, mas minha mãe já começava a ter no rosto uma coloração avermelhada.
— ’Tá, ’tá… toma a chave e vai pr’a casa…
Se tudo se resolvesse assim, ia bem; mas tem o ambiente estéril de casa; infelizmente inevitável, os meus, vivem de comezinharias, de inflamadas de discussões do preço do óleo de soja, ou do louco que matava os taxistas não-sei-lá-onde e vizinhos que fazem barulho. Às vezes até me sinto mal por não ter paciência com eles, mas é sempre assim e tudo aquilo que tento comentar é rapidamente posto de lado, simplesmente atropelado por um desses assuntos corriqueiros, a minha avó com suas polêmicas em torno da troca dos roda-pés, um inconformismo estúpido e sem fundamento nenhum, sem base alguma.
A que ponto que chegamos, a uma vida insossa, sem alegrias, sem amores, sem horizontes. E eu cá, olhando para o teto branco do meu quarto igualmente sem horizontes ou no que esperar, contando os dentes dos selos, carimbando formulários de seguro, trocando as minhas horas de vida por dinheiro sonante, dizendo «bom dia», «obrigado», ou seja, sendo um rapaz bonzinho, bonitinho, com o coração sem pulsação e a cabeça com cebolas podres ao lugar do cérebro; suportando essas situações surreais, esses nojentos clientes de banco, fauna odiosa. Perdi o trem da vida e continuo andando sobre os trilhos.
Há vezes que vou dormir, imaginando que o dia de amanhã não haja, que simplesmente tudo passe do vazio virtual para o vazio real, a não-existência; a mim, que já estou morto a um bom tempo, «mi fa lo stesso», afinal, hoje somos o mundo da estupidez em escala industrial.
Nem há mais a ameaça da bomba atômica para que nos haja alguma esperança. Nem guerra nuclear; nem terroristas. E comprar arsênico é difícil.
Que o Deus aposentado tenha piedade de nós.
Agora dai-me um tempo que vou comprar o jornal e levar o elefante para passear. Quem sabe nesse meio tempo não encontro um fundamentalista islâmico?


terça-feira, setembro 7

Pensieri liberi

Gli arcobaleni d’altri mondi
hanno colori che non so.
Lungo i ruscelli d’altri mondi
nascono fiori che non ho.

Sopra le tombe d’altri mondi
nascono fiori che non so.
Ma fra i capelli d’altri amori
muoiono fiori che non ho.

(Fabrizio De André, musica di Tutti morimmo a stento)
Lacrimosa

«La polvere, il sangue,
le mosche, l’odore,
per strada, fra i campi,
la gente che muore…»
(Fabrizio De Andrè)

Não queria desesperar-me mais; mas visto as situações que se sobrepõem, às borrascas, procelas e celeumas, é impossível. Cada dia mais as minhas incompatibilidades com essa sociedade vil tornam-se mais visível; me sufocam todo dia, me fazem o dia-a-dia insuportável, perdido em atos comezinhos, sofríveis. E nós, perdidos em satisfazer chefes e autoridades, nos negligenciamos e também tudo aquilo que ocorre. Como o Iraque, como os conflitos na Chechênia; e então uma foto cheia de corpos nos bate na cara, crianças, meu Deus do Céu! Até que ponto chega o egoísmo humano, já que «não importam os meios, mas sim o fim» e não só no dia-a-dia: «vamos lá, quero isso pronto para hoje»; «eia, venda mais!», mas também nos extremistas chechenos, que para alcançar seus objetivos – duvidosos – entram numa escola e matam crianças.
Fora todas coisas reprováveis que ficaram para trás, os campos de concentração, os gulags, a repressão ao maio de 68, a ditadura militar; e isso, sentamos em cima e dizemos: «não, não é culpa minha, não tenho nada a ver com isso»; temos que atentar para que não se repita mais com ninguém, que não marchem de novo sobre nossos corpos, que não nos metam nos trens para os campos.
E hoje, fechados num escritório, somente faz eco o riscar das canetas, um digitar surdo e talvez uns carimbos atacando os papéis; e nesse ambiente estéril, nada mais é lembrado, como se fosse um mundo minúsculo, ou até mais, um universo, que fora dali, até as 5 da tarde somente o ignoto existe, e só a partir das 4 e meia sejam refeitas as ruas, os trilhos e as rodas do metrô, que ressurjam os mendigos com suas mãos eternamente espalmadas, os estúpidos shopping centers e uma reconexão dos escritórios estúpidos com o mundo, das sufocantes salas das atendentes de telemarketing, que tem as orelhas inchadas e as bocas moles. Somente às 5 menos um quarto se refazem os ônibus, como se pela mão do Onipotente, ressurgem os táxis, os vendedores de CDs piratas, as carroças de milho cozido, a imagem de Dante e d’A Divina Comédia. Cinco menos dez, se refazem as praças, suas estátuas sisudas de bronze; sobe a poluição dos ônibus, volta a consciência do funcionário de que existem outras pessoas; rebrilha a garrafa térmica, a cartela de Aspirina, o bilhete de ônibus, o seu reflexo no vidro das janelas e pelo lado de fora voam maritacas verdes. O Sol larga o banho e volta a encher a tarde com a sua luz abóbora.
Ignoramos que a vida pulula fora dali, que nascem flores que não conhecemos, em canteiros que não sabemos onde ficam, sobre tumbas desconhecidas e vão parar em cabelos de amores igualmente ignotos. Que continuam a existir os cemitérios ou pobres como o Vila Formosa ou imponentes como o Araçá, mas todos tristonhos e melancólicos. O lugar onde começa sim a não-existência, onde termina tudo aquilo com que mais nos preocupamos, que retocamos com plásticas, que forjamos nas academias de musculação. Termina tudo lá, mais cedo ou mais tarde. Que dê voltas pelo mundo, conheça Leopardi, recite Dante, admire Dostojévskij. Termina tudo lá, amanhã. Adubaremos os repolhos todos nós, independentemente do que somos ou façamos, apodrecemos todos do mesmo jeito; mesmo que alguns se recusem a acreditá-lo. Se o bom Deus existe, certamente Ele não aceita propina em dinheiro.
Às cinco, estão os elevadores dos prédios de escritórios estão cheios de gente cansada, um monte de «boas-tardes». Ora vão todos à merda! Qualquer um ali dentro pode ter um detonador e uma bomba amarrada ao corpo e se o aperta explode o elevador como se fosse ou uma lata de ervilhas ou um porta-guardanapos vagabundo de boteco. Assim acompanharíamos as crianças mortas pelos chechenos nos jornais com uma foto do elevador caído no térreo os corpos despedaçados como um salpicão de frango. Somente aí a consciência do que é o ser humano, afinal, nada mais que um invólucro com um monte de porcariadas nojentas, compostas na sua maioria por água, a mesma que corre no Tietê.
Tudo em primeira página.

domingo, setembro 5

Holandês ou francês?

A escolha do nome deste novo blog foi um critério musical; e fazendo uma classificação esteriotipada das personalidades pelas nacionalidades, talvez eu esteja mais para francês: arrogante, mal-educado, presunçoso e de humor ácido.
Além do péssimo vício mimético que tenho, desde pequeno. Quando vejo um filme que me agrada, acabo por incorporar detalhes do filme ou de um personagem, uma personalidade camaleão; e isso porque a gente me acha original. Que ironia!
O mesmo dos meus escritos (que presunção! as minhas digitadelas...) que absorvem algumas características do autor que estou a ler no momento; vide próprio o texto abaixo: é tão Guareschi que tem até mesmo uma citação, do Guareschi do Zibaldino.

Cursos e profissões estúpidas

Faço cá um mea-culpa: às comentadoras da minha última postada (ficou bom para substituir post, não?), vos declaro que eu também, eu também sou bancário. Evidente que não por escolha, mas o que fazer, «provate pure a credervi assolti, siete lo stesso coinvolti», ou seja, essa minha declaração é como tentar limpar um borrão de tinta num pano branco fazendo uso dum guardanapo: só aumentará o borrão.
E desse meu novo mestiere, às vezes mandam-me fazer uns cursos, estúpidos. Como por exemplo, curso de vendas. Segunda e terça, dois dias de tortura com esse maldito verbo: vender, vender, vender. Também aproveitei para disseminar o mal-estar entre os participantes como no coffee-break (mas porque esse maldito anglicismo?!), onde afirmei categoriacamente que, no último século, indubitavelmente evoluímos no que concerne às tecnologias, às invenções; mas e enquanto nós seres humanos? É visível que regredimos; voltamos a uma lei do mais forte voltada à sociedade de mercado. A lei da selva de pedra.
Se tirei alguma coisa dor curso? Claro! Que há a lei da probabilidade mínima. Por exemplo: se você não jogar na loteria, não vai ter a menor possibilidade de ganhar o prêmio.
Moral da história: continuai a jogar na loto para que vos livrais desses cursos odiosos.

Filmes franceses

A discussão insulsa entre holandês versus francês veio ontem por causa do filme Domicílio conjugal do Truffaut. Excelente filme, diga-se de passagem; ao contrário do que se diz dos filmes franceses e europeus de maneira geral. E como um filme desse pode ser infinitamente melhor. Talvez algum batráquio que caia aqui tente defender produções estadunidenses, que geralmente pecam pelo enredo murcho e um explosão convulsiva de efeitos especiais; filmes que os faz bem, com pouco orçamento e sem efeitos especiais, são os europeus; este sim, cinema por excelência. E como incita Godard num dos seus filmes: «Mas existem os Estados Unidos?».