sábado, outubro 30

Poesia pulvurulenta

Agrada-me muito escrever, embora não o faça muito e nem tenha tino suficiente. A isso, junta-se o ranço e o pulvo pseudo-conservador do qual impregno a minha prosa, dando-lhe uns louros imeritórios – tornando-a quase incompreensível. Minhas inclinações ao português eivado de lusismos, principalmente naquilo que atina à colocação pronominal; nem sempre lá mui correcta. A isso, ajunte-se ainda o punhado de decalques do italiano, aspergidos «com larga mão».
O meu grande problema, é simplesmente sentar-me para escrever. Visto que quando me baixa a inspiração das minhas musas mancas, manetas, anquilosadas e fétidas, as Tietégides; estou sempre nos lugares impróprios: vagão de metrô, na minha estúpida mesa no banco, a atender algum funcionário público estúpido, no meio de alguma aula sonífera. E em casa, quando há tempo, não há condições – um ambiente assaz pestífero para qualquer tipo de raciocínio, que vem sobreposto pelas consuetas e pedestres demandas domésticas: reclamações.
Por isso, tudo aquilo que escrevo é de curta duração; não consigo desenvolver bem os temas. Fico mais apropriado para as crônicas. Romances, poesias, os deixo para quem sabe bem fazê-los. Sexta-feira, sobre este assunto, discorria com Miguel; declarei-lhe minha preferência pela prosa. Não obstante, indagou-me se tinha eu alguma coisa em verso, já que não publicara nestes e naquele outro blog nada. «Tenho», declarei-lhe, «mas é coisa assaz ruim.». É tão ruim, mas não tenho coragem de deitar fora uma grossa pasta de originais (coisa da qual incumbi o fero e fiel amigo Donato de carbonizar). Mas como ando de péssimo humor e muito chateado, vos dou u’a amostra.

Fevereiro

Choveu,
a água inquinada entrou nas casas,
varreu sonhos e lembranças.
Levou também o sono,
mas trouxe o lodo
revolvido das entranhas
do ribeirão ofenso.

Trouxe também
os pernilongos dos paludes
e ratos raivosos.

Sesquimétrica enxurrada
que manchou paredes
e brincou com os carrinhos;
ora se vai,
prometendo voltar.

Helianto

O helianto gira e acompanha
o Astro-rei em sua revolução tamanha.
De Oriente a Ocidente,
de Levante a Poente.
Todo dia, de igual maneira,
como nós, movidos pela rotineira
faina de procurar no maldito argento
a manutenção do nosso insustentável sustento.

Desemprego

Um dia finda
a vida linda
que programastes.

Caído no desemprego
(ocupação desremunerada)
criando da inanição
o onanista econômico.

Anduriña

Ven cá ond’a mi,
nena dos ollos castaños
e dos cabelos negros
como as asas das anduriñas.

Mas así como as anduriñas
me voaste para lonxe.
E fico cá triste coa miña gaita
e seus surdos lamentos.

Volaste, ò lado da cruz
da vella igrexa,
co’ seus santos,
e suas virxens-marias.

A cantar das litanias;
mas me deixou
co un coraçon escuro
na sombra dun pino.

¿Más que te din as vellas cruzes, anduriña?
Que voou e non volta máis.


terça-feira, outubro 26

Ruiu su coro e s’animu che lizzu...

Acordei tão ruim de caprichos nesta manhã, que me recusei a ir trabalhar. Tão mal, que durante a madrugada, o Batalhão Motorizado de Sassari e seus homúnculos tomaram o quarto (como n’As aventuras de Gulliver), cantando em Sos Dimonios em sardo. Acantonaram-se entre o guarda-roupa e a comoda. Ficaram ali até qu’eu desistisse totalmente de ir trabalhar; às dez e meia pontualmente levantaram acampamento. Eu já não poderia mais ir trabalhar.

domingo, outubro 24

Da semana

Mesmo depois do desvelado neste domingo; algumas outras coisas chamaram a atenção nesta semana.
O bom velhinho tropeçou e caiu. Mais um golpe baixo da Inteligência Americana. Fidelzito, depois de um cutro discurso de um ou dous pares de horas, a passo rápido tropeçou em algo. Não sei no que, pois não vi a cena, somente a seqüência de fotografias publicadas n’O Estado de São Paulo - que não é lá um jornal mui confiável. Por que, ao invés do glorioso Fidel, não caiu aquele velhote anquilosado do Wojtila? Fiquei ainda com mais bronca depois do Coro da Armada Russa ter ido lá cantar, como já vos relatei nesta espelunca virtual.
* * *
Ontem na Pinacoteca do Estado, houve o lançamento de um cd-livro (Cancioneiro da Imigração), de Anna Maria Kieffer. Foi assaz interessante; além do próprio cd-livro ser um espetáculo (fui obrigado a comprar-me um), houve apresentações de alguns grupos típicos, como o húngaro Pántlika, de dança, o da Casa dos Açores e até uma apresentação de fado. Foi realmente imperdível. Foi naquele primeiro pátio interno, coberto com vidro no teto; assisti de uma das janelas do 1.º andar, quase de camarote, deveras desconfortável; mas lá fiquei das 11 às 15. Quatro horas de pé. Somente um motivo a mais me faria ficar assim em ocasião diversa.
* * *
Esse compêndio virtual que faço, não passa duma lápide marmórea, atolada no limo de um campo-santo qualquer. Ninguém se detém a ler lápides.
* * *
Caríssimos! Nicotina ou estrequinina? Há opção viável?

O Conde partido ao meio

No exercício das minhas funções notariais, informamos o óbito, na madrugada deste domingo de metade do Conde della Venardia, visto que à fulminante nova sua metade esquerda não agüentou. Não haverá funeral tradicional, somente simbólico, visto que a parte falecida continua anexada à parte sã (não tanto).
Como espólio, a parte esquerda deixa além de alguns desgostos, um coração cansado e dolente; indolente nas suas funções. Não há herdeiros ou beneficiários; terceiros têm quinze dias para reclamar posse se assim o quiserem; vencido esse prazo, a caixa com os pertences será recolhida a algum armazém estatal, onde ficará a disposição do Público Poder.
Abaixo, segue o texto escolhido para epitáfio pela parte finada:
A te, pedone che passa, te li dedico questi bei versetti:
«Gobbo t’o pare,
gobba t’a mare,
gobba la stronza di t’a sorella!
N’era gobba anch’a quella.»
(A ti, pedestre que passa, te-los dedico estes belos versinhos:
«Corcunda teu pai,
corcunda tua mãe,
corcunda a tonta da tua irmã!
Ela também era corcunda.»)
Pregate per egli.
Venardia, aos vinte e quatro dias de outubro do ano da graça de dois mil e quatro.
O texto que se segue foi extraído dos Guardanapos literários, capítulo da obra Le ricche ore del Conte della Venardia.

Divino guardanapo

Então, arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração.
(Gênesis, 6.6)

Um guardanapo do tamanho do mundo. E Deus limpou a Terra do Cosmos. Passou-o como quem limpa uma vidraça, cancelou a existência dos homens sem que se apercebessem. Grandes e pequenos, ilustres e medíocres. Sem desespero, sem padre-nosso, sem extrema-unção. Deus execra essas baboseiras.
Durante séculos, patriotas estúpidos e demagogos usaram de Deus para justificar e oficializar suas ações. Deus, Pátria e Rei. Pediam-lhe que protegesse os reis, pelos hinos. Estúpidos. Não sabem que Deus gasta sua eternidade a jogar tranca, com a excelsa vantagem de poder criar um jogador diverso a cada partida.
Para Deus, os únicos reis que lhe importam são os do xadrez, jogo que divide sua preferência com a tranca.
E tanto se importa igualmente com os que obtêm o cetro pelo voto. No xadrez divino, as peças não elegem o rei; nem a peças eletivas.
Quando foi morto Umberto I, Deus perguntou se o fato poderia afetar o andamento da sua partida de xadrez, justo no momento que a mão de argila adversária (sempre a consueta argila!) ágil sobre o tabuleiro, sentou-Lhe um xeque-mate. Irritou-se Deus com isso e com sua onipotência transformou seu oponente em um vaso; afinal, era tudo a mesma argila.
Na Terra, evocava-se o Seu nome à exaustão: «que Deus lhe pague!», «pel’amor de Deus». Seu nome, que segundo certos escritos (que Deus também não sabia bem a que serviam), o nome do Onisciente não deveria ser dito em vão. Escritos feitos, escritos desobedecidos. Dizia-se seu nome tantas vezes quantos eram os grãos de areia no Saara. Mas isso não se Lhe importava, era muito melhor tirar um cochilo; poderia dormir toda a eternidade.
Certo dia, acavalou os óculos sobre o nariz e leu todos os jornais e todos os livros escritos. «Até que são espertos!», riu-se amarelo. Acabada a leitura, decidiu o Onipotente não tirar mais cochilos tão longos; já que somente tinha deixado Noé e sua esposa sobre a Terra (ah! já haviam aprontado muito aqueles outros dois primeiros, Adão e Eva). Acordado, viu o estrago que os filhos do homem haviam feito ao seu belo planeta.
Mas não se irritou: nada que um guardanapo não resolva. No pior dos casos, um paninho com veja.

domingo, outubro 17

Fim do mundo

Fui sempre um pouco moscovita nas minhas idéias.
(Bento Santiago, personagem de Dom Casmurro, de M. de Assis, capítulo XC)
O fim do mundo decididamente é já próximo. No aniversário de Sua Santidade João Paulo II (nome pontifício do clérigo polonês Karol Wojtila) o Coro do Exército Vermelho foi cantar na sala de audiências do Vaticano. Por que eles não cantaram Nós somos a cavalaria vermelha e deitaram tudo aquilo ao chão? O tempo é de fezes; de canções revolucionárias e kosmol (Dani, veja lá o plural de kosmol para mim, por favor) a Happy Birthday. E eu que ainda esperava que a União Soviética (ai, que saudades) desse fim a toda essa corja de preto. Pior é a versão que circula na Internet do Exército Vermelho cantando Oh, Canada.
A imagem daqueles soldados com os quepes imensos, faixa vermelha e estrelona amarela cantando no Vaticano; realmente a que ponto chegamos. Oremos. Mas não à Vaticana, mas como nos ensinou o mestre Gil Vicente:
Pater noster criador,
Qui es in coelis, poderoso.
Santificetur, Senhor.
nomen tuum vencedor,
nos céu e terra piedoso.
Adveniat a tua graça,
regnuum tuum sem mais guerra;
voluntas tua se faça
sicut in coelo et in terra.
Panem nostrum, que comemos,
cotidianum teu é;
escusá-lo não podemos;
inda que o não mereceremos
tu dá nobis. Senhor, debita nossos errores,
sicut et nos, por teu amor,
dimittimus qualquer error,
aos nossos devedores.
Et ne nos, Deus, te pedimos
inducas, por nenhum modo,
in tentationem caímos
porque fracos nos sentimos
formados de triste lodo.
Sed libera nossa fraqueza,
nos a malo nesta vida;
Amén, por tua grandeza,
e nos livre tua alteza
da tristeza sem medida.
(Gl Vicente, de Quem tem farelos? - O velho da horta, fala do Velho)
O velho eu

…mamma mia, pe’ te!
Se te pigliava ’a primma gioventù!
(Pecché?, Pennino / De Flaviis)

Saí da igreja de São Luís e atravessei a Paulista. Eram pouco antes das dez da manhã de uma quarta pós-feriado. Entrei pela Bela Cintra e assaltaram-me uns velhos assuntos: ela. Deixei-a, como deixei também a imagem do velho eu. Ficaram lá, na esquina da Bela Cintra com a Itu, o espectro do velho eu que se apaixonara da mocinha doce e frágil, envoltos numa densa névoa, talvez o fumo dum cigarro. Assim prossegui a descer a rua, não sem antes de fazer-lhes um acento cordial:
— Adeus! Sejam felizes!
— Sim! O seremos por você – respondeu o eu de ontem.
— E seja-o também! – bradou a mocinha com sua costumeira voz cândida.
— O serei! – respondi – Até logo.
Do adeus, a saudação evoluiu para um até logo. Talvez o primeiro sinal do meu futuro, ou seja, que aquelas imagens não mais me deixariam. Continuei a descer a rua, andando e saltitando como fazem as crianças de dez anos. Justo naquele instante, voltei aos meus dez anos, livre, com vontade de comer doces, toneladas deles. Não pensava eu aquele átimo em mulheres, no estúpido dinheiro, nos chefes de escritório, nem aos milhares de imbecis como eu – visto que nas grandes cidades, somos tantíssimos!
Assim, a eterna minha guerra contra eu-mesmo; no meio do intratável palude da minha realidade, emergiu uma trégua. Acum ori niciodata!, berrava meu coração com ares romenos. Quanto duraria? Não o sabia, mas pude respirar um pouco melhor.

* * *

Sábado à tarde, voltava pela Marquês de Itu. Deixei meio litro do meu sangue; ao menos se sou socialmente imprestável, posso sim ainda servir para alguma coisa; senti-me nobre, un sînge de român, continuava um coração estranhamente romeno. Que há de mal? Afinal, somos todos latinos.
Indo distraïdamente, numa esquina com uma rua da qual não me lembra o nome – sei que era entre a Amaral Gurgel e a praça da República – sentia-me em comunhão comigo mesmo; tanto em comunhão, que naquela fatídica esquina, como se esperassem o bonde, estavam entrelaçadas as duas imagens que largara eu na Bela Cintra. O velho eu reprovou-me alguns comportamentos da véspera – afinal, somos o mesmo e de tudo ele sabe, apesar d’eu nada saber dele – e fundimo-nos novamente e o fantasma da moça doce e frágil voltou a acompanhar-me.
Senti-me tonto. Não soube se fora a doação de sangue ou se a vista daqueles espectros. Apoiei-me num poste e esperei passar; correram-me as lágrimas pelo rosto. Como pude ser tão egoísta; de ter renegado o meu próprio sangue, desfeito-me de velhas promessas. Jamais me perdoarei.
Cabisbaixo e com os olhos marejados, voltei ao metrô.

terça-feira, outubro 12

De Il Trovatore, música de Giuseppe Verdi e libretto de Salvatore Cammarano.
Atto IV
Tu vedrai che amore in terra
mai del mio fu più forte,
vinse il fato in aspra guerra,
vincerà la stessa morte.
O col prezzo di mia vita
la tua vita salverò,
o con te per sempre unita
nella tomba scenderò.
Acto IV
Tu verás que amor na terra
nunca foi mais forte que o meu,
venceu o fado em áspera guerra,
vencerá a própria morte.
Ó, co’ preço da minha vida
a tua vida salvarei,
ó contigo pra sempre unida
ao seplucro descerei.
(a minha bem querida)
Notas gerais
Família, fardo imenso. Não me refiro àqueles que moram connosco dentro de casa, sob o mesmo tecto, mais aos agregados, tios, primos e congêneres. Recentemente, por acidente, descobri a opinião que têm alguns sectores da família de minha mãe, por um descuido de uma prima menor: acreditam-me homossexual.
Com todo respeito aos meus amigos e conhecidos que o são (eles bem o sabem que muito os respeito); mas no meu caso soou como imensa ofensa. Nunca me sentira tão ultrajado; tamanho foi o furor que apanhei que poderia eu ter desmontado um panzer com os dentes. Mas que língua ferina têm estes do meu sangue. Nunca fui de grandes intimidades; sou capaz de afirmar que meu contacto é maior com algumas pessoas da Faculdade do que com essas ovelhas desgarradas da minha família. Qual foi a minha reação? Ser mais antipático que de costume. A infame sogra de meu tio, vindo de funçona junto com ele numa das suas mais recentes - e raras - visitas; comentou com meu pai sobre ele:
- Que coisa, de contabilista a vendedor de ovos!
Nem preciso relatar quão vermelho ficou de ira meu pai. Se ele não fosse uma pessoa controlada, talvez tivesse voado no seu pescoço. Eu de soslaio:
- Que coisa, é velha, gorda e tem uma língua...
Este é o novo Conde. Furibundo pelas infundadas acusações; mesmo que eu fosse, não lhes tenho a dizer respeito. Ao inferno todos, que o demônio lhes espera com o tridente!

sábado, outubro 9

O tempo é de fezes.
As engrenagens que regulam a nossa vida são - evidentemente - lubrificadas com excremento.
A ti.

Não há mais Novos Mundos a descobrir. Não há mais cabos das Tormentas para dobrar; nem mares infindáveis para sulcar com as naus. Tudo já foi feito, tudo já foi dito, falado e escrito. Tudo já foi pensado e milimetricamente esquadrinhado. Sou somente mais um soldado de infantaria, passando em desfile diante do teu palanque, a caminho duma guerra inútil que não terá fim. A ti, minha princesa, soberana do meu coração, que posso oferecer-te? Não possuo nada mais que o meu capacete enlameado, meu fuzil oxidado e a cara suja de camuflagem preta, para esconder-me dos inimigos. Somente uma coisa te mando dos longitanos campos natais; e atravesso a coluna de soldados aos empurrões para oferecer-lha, apoiado nas pontas dos pés, dependurado na mureta do palanque, sob o olhar de ministros e pares-do-reino assombrados pela minha ousadia: um pequeno e delicado botão de rosa. É o que tenho. Até o futuro.