domingo, novembro 28

Sexta-feira

Uma sexta-feira totalmente atípica; não sei bem se a crise de labirintite da manhã alterou a minha percepção, mas ocorreram coisas, se não estranhas, no mínimo incomuns. Depois da crise de tonturas, uma estada de duas horas num ambulatório que parecia mais uma enfermaria de campanha lembrou-me do final da Abertura 1812 de Tchajkovskij; além da incomum trilha sonora, deitado e pasmando, fiquei a olhar o céu azul de pouquíssimas nuvens e a sofrer a terrível manhã canicular. Medicado com Dramin, dormi por quase uma hora na enfermaria antes de ter sido levado para casa num carro oficial da Secretaria.
Em casa, depois do almoço, mais uma sessão soporífera devido ao efeito do remédio. Devidamente recuperado dos acessos, resolvi por bem ir à Faculdade. Mais um dia acadêmico normal, se não fosse o torpor provocado pelo calor; um calor não das nossas terras, mas um agressivo e penetrante calor siciliano, como o descrito nos livros, que gruda na pele e a transforma numa superfície húmida e brilhosa; e eu também não estava com o modelito «burocrata soviético». À noite, não havia ninguém para vir embora comigo e acabei por vir com o ônibus para o Parque Dom Pedro que sobe a rua Augusta. Afinal, nada de novo sob o Sol, ou melhor, sob a Lua, já que era noite. Os consuetos caminhos nada de novo apresentavam, se não fossem três singulares ocorrências. Primeira: descendo a rua Augusta, já depois da Paulista, sentido centro, a dita Augusta dos Inferninhos, estava eu a pensar em absolutamente nada (ou naqueles pensamentos «como a minha vida é estúpida») quando na porta de um dos bordéis, eis que surge, como um deus ex machina, um leão-de-chácara. Perguntareis «e daí? nada mais natural que nesse tipo de lugar haja um segurança». O problema era o tipo físico do segurança: era um anão; devidamente paramentado com a dignidade que requer a investidura de leão-de-chácara, com sua camisa, sua gravata e seu comunicador na mão, mas a figura atarracada e - perdoai-me - grotesca do anão. Pensei cos meus botões (mentira, não viera-eu nem de camisa) que talvez fosse obra do medicamento tomado antes, ou da minha vista cansada, mas não, lá estava o pequeno defensor, impávido e sisudo. Segunda: no final da rua Augusta (ou era já na Martins Fontes, não me lembra bem), o ônibus parou fora do ponto para um senhor de idade, este entrou no colectivo e acenou ao motorista «Obrigado, meu bom homem» (sim, exatamente do modo qu’eu transcrevo) e ao mirar o ancião emitente da frase, percebi que portava à cabeça um grande quepe do Exército da Salvação; procurei pelos meus arquivos cerebrais e encontrei somente duas ocorrências relacionadas com aquele quepe: uma propaganda de televisão da década de 1980 (mais ou menos 1985-6) e um episódio do Mister Bean. Resumo da ópera: eu nunca havia mais visto alguém a portar aquele quepe que não fosse uma imagem televisiva. Decididamente o remédio não me fez muito bem.
Julgando assunto encerrado, concentrei-me em reparar na paisagem nocturna que se me mostrava; certo que não é lá das melhores, mas é sempre o Centro Velho. Quando o ônibus embicou pela praça João Mendes, detive-me num dos postes que apresentava na parte inferior um cartaz com um grande sigma. Sigma? Sim, um sigma. Era uma convocação para o primeiro Congresso Nacional dos Integralistas que se realizará no Belenzinho. Tirei os óculos, só poderia tratar-se de sujidades nas lentes. Repus os óculos e o cartaz continuava lá. Decidi que não tomaria mais Dramin.
Fora vero? Creio que sim, mas não havia infelizmente ninguém comigo.

segunda-feira, novembro 15

Canalhices de todas as tendências

O canalha de direita

Sou colonialista à moda antiga; esse colonialismo econômico sob o qual vivemos não está com nada. Tinha de ser muito macho (perdoem-me a grosseiria) para mandar colonos para o meio do nada - ou dos tépidos pantanais tropicais, ou dos desertos secos e intragáveis - e tropas para reprimir os nativos - afinal, o que entendiam eles da Civilização? Nesses quesitos, não há nação igualável aos britânicos - «rule Britannia, Britannia rule the waves!» - o sobrano inglês (rei da Inglaterra, Gales, Irlanda, Escócia, Imperador da Índia e defensor da Fé, pela graça de Deus) erguia soberbo sua xícara de chá desde Buckinghan e fazia sombra sob um Império que conteve já um terço das terras do planeta, um império onde o Sol, nem o Astro-rei jamais se punha. E levou a Civilização a lugar onde ela era simplesmente uma abstração, como na África, por exemplo. Não só os britânicos têm parte nessa glória, sejamos francos: têm sua fatia a mãe França, a irmã Bélgica, o órfão Portugal e até a neonata Itália tem lá seus louros (não nos esqueçamos do excelso Império Colonial Italiano, mas deixemos somente a lembrança, pois isso rende assunto para toda uma postada). Antes da intervenção civilizatória na África, por exemplo, as tribos incivilizadas e desprovidas de qualquer cultura (ocidental, é claro), matavam-se e aniquilavam-se em guerra intermináveis, onde os chefes das tribos disputavam o poder pelo poder. Depois que a madre Europa tocou-os com o cetro do Progresso e da Civilização, as mesmas tribos (ou juntas as inimigas pelas geométricas e regulares fronteiras traçadas pelos Europeus ou separadas as etnias por elas) continuam ainda num terrível fraticídio só que com organizados exércitos regulares, tropas bem uniformizadas, marchas ao som da língua-mãe do ex-colonizador (geralmente ainda padrinho cultural e patrão econômico) com suas reluzentes tropas e trompetes; ou seja tudo no melhor estilo civilizado e europeu.
O canalha de esquerda
A União Soviética faz falta? Certamente que faz! Uma falta tremenda. Muitos costumavam-na chamá-la de máquina estatal burocrática e anquilosada, o que é uma baita duma mentira e certamente propaganda das agências de inteligência dos governos ocidentais pequeno-brugueses. Por causa dessa minha posição, fui tachado feixista de esquerda (!). Pior pensar que a gloriosa União Soviética naufragou por que revoltadinhos joga-chupeta-na-sopa (depois explico o conceito) nas repúblicas-irmãs federadas deram asas a fantasiosos nacionalismos (que nunca tiveram motivo de ser e não passam de imensos egoísmos colectivos, plantados pela insidiosa Águia Americana), e esses pequeno-burgueses revoltadinhos porque não podiam comprar seus carrinhos e suas torradeirinhas extra-muros, fora outras porcariazinhas. Incendiados pelo maléfico espírito do consumismo desenfreado dos ocidentais capitalista (culpa do camarada Mihaïl, não é?!), destruíram em nome desse consumo, a espledorosa União, forjada pelo fogo da amizade dos povos e guiada pela luz da lanterna de Lênine.
Agora, cada pérola da União transformou-se em paisecos sem nenhum peso no cenário geopolítico. Enfim, logo que a União desmanchou-se sob a égide do egoísmo, os famigerados Estados-Unidos (país tão vil que é até desprovido de nome), quando seviram a única superpotência, trataram logo de pôr de fora seus asquerosos tentáculos, principalmente com a administração do Grande Arbusto, guru sanguinolento e tripudiador.
Se a União Soviética existisse ainda, os Estados-Unidos jamais teriam invadido o Afeganistão, já que a libertação deste país já teria sido feita pelos soviéticos, que a começaram, mas não a terminaram (1981-9) e certamente, o Afeganistão, grato de não ter caído na barbárie do fundamentalismo, teri pedido à URSS de ser também uma república sob a benevolente e generosa régia de Moscou. Muito menos o Iraque teria sido invadido, já que o camarada Saddam era entusiasta fã do camarada Stálin e seguidor dos seus melhores métodos de administração e governança (por isso também seu bigode à Stálin). A Alemanha seria ainda duas - afinal, já viveram tanto tempo até 1871 separados, para que juntar; e juntos são perigosos. Viva a RDA! Talvez tivesse ocorrido até o contrário, a Alemanha teria unido-se não sob o capitalismo nojento da Alemanha Ocidental, mas sob a fulgurante égide do trabalho e do socialismo. RDA do Reno ao Oder!
Também a União Européia não teria de aturar os insistentes pedidos de ingresso dos países egressos do velho Comecon (Conselho de Assistência Econômica Mútua, a versão comunista da União Européia que provavelmente já teria suplantado).
Ou seja, tudo estaria melhor para todos.

Republic’s Day

«Liberty, liberty! Open your flies over us!
From the battles in the rain, we can hear your voice!»

Palestina

(inconcluso)

Se assim quiserdes, sábio condutor,
vai-te em paz.
Vede bem que o palestino ideal motor
vai sagaz.

Durma em paz! Recorda-te que o tricolor
das palestinas gentes, esvoaçante,
livre sob o fúlgido sol rampante;
sobre Gaza, Ramallah, lança o tepor.

A tepidez do sol da liberdade,
na legalidade dos limes veros,
contenedores da vossa veleidade
respeitada nos seus desígnios feros.

Ora, terra palestina, incita
o teu fado liberto e dá excelso
exemplo, respeitando o israelita

domingo, novembro 7

A América em pé

À horríssona victória do Imperador Jorge II, o Arbusto de América, no seu duelo com o eleitorado, dedico esta canzoncella, baseada em All’armi!, música propagandística do Ventênio Feixista.
A américa em pé
Às armas, às armas!
Às armas, ó guerreiros!
Nós, da América os componentes,
nossa santa causa levaremos até à morte.
E lutaremos sempre fortes fortes,
enquanto em nossas veias houver sangue:
enaltecendo a pátria nossa;
todos unidos, sim, votaremos
para mor glória do Duce Bush!
os eidos do Iraque devastaremos.
Vamos amigos,
em todo evento
nós sempre prontos todos seremos
até que a derrota dessa canalha
nos renda o petróleo sacro e santo.
O escopo nosso temo-lo de cor:
pelejas com certeza de victória!
e que nunca suma a texana glória,
toda razão da nossa liberdade.
Fora Saddam, e talebans
do vosso sangue nós pagaremos
as Torres Gêmeas e os aviões
ao pó vossas nações reduziremos.
Vamos amigos
da Coalizão!
todos unidos defenderemos
contr’os inimigos e traïdores
que a um por um
exterminaremos.
Às armas...
Prepara-te logo, cubano hirsuto,
o mesmo fim do Iraque tu terás.
E ao teu governículo obtuso
será jogado ao mar aos ponta-pés,
das botas duras dos bons marines
a ti e aos teus expulsaremos.
E a instalação dos nossos cassinos
virá logo atrás da missão da Onu.
Vamos amigos!
menos a Espanha.
Todos unidos nós varreremos
de Cuba toda essa velha escumalha!
Que ao grito nosso
estremecerá!

sábado, novembro 6

Sem título

«Olla o modo como andan
derrotados os lúcidos, os probes conformados coa miséria,
e non pregunta.»

(Perceval, de Xosé Luís Méndez Ferrín)

Tudo gira, tudo anda. Passam os bondes, os ônibus, os automóveis, os foguetes, os satélites; quem sabem logo a próxima sonda para Marte. Eu continuo parado no ponto; sem perspectivas de deslocamento. Não é somente a língua que tenho presa no passado e imobilizada, também é assim a minha alma.
Lá fora, pela minha janela gradeada, vejo que chove; mas que ao mesmo tempo, as coisas pegam fogo. Arafat está à beira da morte, Bush foi reeleito, escândalos ministeriais (eis novamente os generais-de-pijama), a minha agência que está lá, esperando-me avidamente para segunda-feira. Alguns podem já, de antemão, alcunhar-me alienado; pois na verdade é bem ao contrário, todos estes assuntos afligem-me imensamente; fora os mais comuns - que se tornaram comum, que absurdo! A fome, a pobreza, as moscas que pulalam nos lábios das crianças etíopes e somalis, das nossas crianças do Setentrião agreste e inóspito, a falta d’água, as manchas do petróleo-é-nosso pelo mare-nostrum A roubalheira dos políticos, os currais eleitorais, a violência urbana, a urbe sufocada em si mesma e asfixiada nos próprios dejetos. E todos portam-se como se fora tudo normal! Preocupam-se com mesquinharias, lêem Paulo Coelho no metrô.
E eu, que quero dizer com este rol de desgraças e infâmias? Nem mesmo eu bem o sei. Elas acuam-me todos os dias, fustigam-me pelo noticiário do rádio e pelas páginas dos jornais - penduradas feito galhardetes nas bancas; puxam-me o tapete de sob os pés. Devido a tudo isso, fiz-me áspero - às vezes intratável. As pessoas falam commigo e delicadamento desvio a atenção da conversa para o nada: uma janela aberta, um céu azul, uma árvore ondulada pelo vento. Fora as minhas próprias veleidades. E afinal, onde quero chegar com tudo isto? Talvez a um pedido de desculpas aos que me conhecem e são obrigados a conviver commigo. Mando-vos desculpas pela vicenda inoportuna, talvez até uma desculpa pela minha qualidade de ser humano, pela minha própria existência.
Também eu, mesquinho e egoísta, geralmente volto-me com muita freqüência aos meus desidérios, aos meus castelos de vento e com isto vos importuno; os meus amores irrealizáveis - isto principalmente. Aproveito o ensejo de desculpar-me com os meus sete, oito leitores (vê, Ërico, tens tu mais leitores) por estas lamúrias sem nexo algum, mas infelizmente não resisti a publicá-las, visto meu actual estado de apatia e desilusão; acabei por transformar este blog num antro das minhas misérias pessoais (disfarçadas e travestidas? mas quem não as entende e sabe-as perfeitamente, tão mal ocultador sou eu!). E sabeis bem que não era esse bem o intuito.
Reitero as minhas desculpas, a qualquer parte ofensa, por qualquer coisa que vos incomode ou por qualquer expressão incompreendida; pela minha empáfia.