domingo, agosto 29

Minuto solene

Finalmente encerrei minha conta no Banco do Estado de São Paulo, vulgo Banespa; aproveitei que já que havia de resolver umas porcarias mal-feitas pela burocracia alheia e dei cabo da conta. Não sem esforço, nossignore!
Entrei na agência acompanhado de André, passei os vinténs que sobraram para uma outra conta e sentei-me no atendimento: «Boa-tarde, quero fechar a minha conta.». A atendente fez uma cara como se houvesse visto um elefante diante de si. «Mas porque?». «A conta não me é mais útil... recebia a bolsa de um estágio; agora mudei de emprego e a conta não me serve mais...», rebati enérgico imaginando que o argumento seria suficiente para a rendição da bancária.
«Mas é uma conta universidade?», perguntou a gentil abelhuda. «Não faço a menor idéia...», respondi num tum totalmente menefreguista. A bisbilhoteira consultou o seu terminal eletrônico: «Ah, sim... é uma conta universidade... façamos o seguinte, mantemos a conta e reduzimos a tarifa a um e sessenta...».
«Não», cortei ríspido, «não uso mais a conta e quero fechá-la...»
«Mas se você receber uma outra bolsa? Vai ter de abrir a conta de novo...»
«Isso é o de menos.»
«Terá de trazer todos os documentos de novo...»
«Bem sei.» começava eu a perder a paciência. «O futuro a Deus pertence, minha cara...».
«Vamos fazer o seguinte... porque você não abre uma poupança e...» enquanto ela falava abanei a cabeça como quem repreende uma criança: «Não!». «Você ganha essa nécessaire... pode dá-la à sua namorada... tem namorada?»
Então eu me enfezei. O que tem a ver uma coisa com a outra? Uma instituição financeira abjeta e execrável com os meus pensamentos e sentidos privados? Lembrei-me de Aída, fiquei nitidamente transtornado e a menção da palavra namorada naquele instante ofendeu-me profundamente. Tive vontade de dar uma de louco: «Ou você fecha essa joça de conta ou eu explodo esse banco detestável; explodindo esse antro, na melhor das hipóteses, vocês ganham uma sucursal na lua!», mas o espítito diplomático e pacífico habitante do meu corpo voltou rapidamente ao comando: «Não, não quero! Quero apenas fechar a bendita da conta... veja bem: eu tenho três... isso mesmo, três contas bancárias» indiquei três com os dedos «e sou um só e ganho um só salário...» indiquei com um dedo em riste, «é pouco salário para muita conta! E não, não tenho namorada!». Provavelmente a essa altura eu já me encontrava escarlate pelo esforço sobre-humano com que impostei a voz e o tom raivoso que usei, principalmente na última frase.
Depois de alguns segundos de quase-total silêncio, onde se ouviam somente farfalhar lonjano de papéis, um rumorejo baixo de conversa e os apitos eletrônicos dos caixas para chamar as pessoas da fila, a moça suspirou profundamente: «Já que você quer assim...» e tirou da gaveta um termo de encerramento; assinei e foi depositar vinte-e-oito centavos que ficaram faltando. Convém dizer que o diálogo aqui retratado foi eximiamente resumido; o esforço daquele que vos escreve foi dizer não, não, não peremptoriamente durante quase quarenta minutos.
Conta encerrada. No dia seguinte, hoje, pus os dois talões de cheque da extinta conta dentro duma panela e os incinerei. Nunca imaginei que míseros dois talões pudessem fazer tanta fumaça e empestar uma cozinha em segundos. As cinzas, solenemente as aspergi pelo jardim, com larga mão.
O que é belo e instrutivo; como diria Guareschi.

Aviso
Por favor; mesmo que não seja possível assinar sem estar cadastrado, é possível deixar o nome no corpo da mensagem, por tanto, procedei assim. Grato.

domingo, agosto 22

Do quinto tomo dum diário que não tem fim

Estudo em azul

Agora tentarei desobstruir um pouco o fígado; faz tempo que não publico nada do gênero. Primeiro, fazendo juz à minha mediterraneidade, não posso tratá-la por Ievgénia (é, é sobre ela mais uma vez), então, apropriando-me da pena do maestro Verdi, tratá-la-ei por Aïda; por causa da ópera e daquela maravilhosa ária que tenho vontades de cantar («Se quel guerrer io fosse! / Se il mio sogno se averasse...).
Houve um tempo, não muito distante; cerca de um ano recuando no tempo da presente data, no qual eu vivia bem, em paz comigo. Havia me livrado duns pulhas que infernizavam a minha viada há algum tempo já, estava estudando. Claro que havia problemas, mas são aqueles de sempre; vivia a minha vidinha pequenina. Estava eu então em plena desocupação, angustiado por isso; afinal, qual casa tem bom ambiente para estudar? Acordava tarde e à tarde ia para a Faculdade.
Junho de 2003: uma aula de Literatura. Sentei-me numa cadeira e fiquei aguardando a entrada do professor, como toda aula que entrava; até que ele chegou e disse:
- Olá, meninos... vamos fazer o seguinte, hoje; façam um cerchio, perdão, um círculo com as cadeiras, vamos fazer uma roda.
Fizemos um círculo e a aula começou. O professor fala, fala; até que, perdido em divagações (o que é normalíssimo da minha parte) até que percebi. Nossos olhares se encontraram... certamente foi um acidente. Mais alguns minutos, outro esbarrão de olhos. Então perguntei a mim: «mas quem é? não me parece estranha...», visto qu’eu demorei um bom tempo a começar a falar com a turma da sala. À pergunta me acorreram uns fragmentos de imagens do ano anterior; sim, sim... ela fez algumas disciplinas comigo... na verdade só uma; e desde aquela época, dessa disciplina perdida num primeiro ano de Faculdade, ela tornara-se uma espécie de ente que abitava a densa floresta do meu subconsciente... o seu semblante deu forma a várias aparições de sonhos e eu começava a cismar com as repetidas ocorrências desses sonhos habitadas sempre pela mesma moça; só que em diversas ocasiões: de enfermeira à princesa num baile de palácio. Tenho poucos sonhos, como até hoje, mas durante um tempo, ela os habitou com insistencia.
Quando reconheci o rosto, naquela aula de Literatura, tive um frêmito que fez com que a cadeira se arrastasse sobre o chão. Deus! Devo estar a ficar louco! Olhei melhor e lembrei da ocasião terrena da qual reconhecia eu aquele rosto; e para meu alívio veio-me a lembrança da aula já um ano lonjana. Acalmei-me mas senti-me o rosto quente (culpa rubet vultus meus, não é, maestro?). Esbarramos mais uma vez o olhar, pela terceira.
Meu nariz começou a arder e os olhos me lacrimejaram; estava a vir um daqueles espirros terríveis. Veio. Quando me recompus, ouvi numa voz quase sobrenatural de tão suave: «saúde».
Foi ela; ela me disse saúde!
E foi desde dia em diante que minha paz foi-se embora e me consumo, me consumo... ora me sinto nos elíseos; e ora no mais profundo dos infernos pelas minhas penas (praeces meae, non sunt dignae...).

O azul eu explico depois.
«Os sonhos são como pedras de gelo: derretem sob o calor da rotina e do desespero.»

A minha imaginação um dia teve asas grandes; planejava um belo futuro. Mas isso foi há boa dezena de anos atrás. Hoje ela desespera-se em ter de ser pedestre para não comprometer a minha parca sanidade metal. Viver privado, qual monje; parafusado ao chão, qual poste; com cara de quadro renascentista, qual bancário. Ter de agüentar clientes lamuriosos e chorões que conseguem acabar com o dia de qualquer cristão. «Si es así la vida, ¿para qué vivir?».

Cansa. Tudo cansa e tudo enoja; inda mais quando não se vê luz sob densa neblina... a qualquer hora pode chegar-se o nosso barco a um escolho, a um rochedo agudo emerso e nada. E afinal, para que tanto sofrimento, se um dia terminamos tudo do mesmo jeito? Tudo é vaidade vã.

A melancia

Numa avenida movimentada duma grande cidade, uma melancia estava parada num ponto de ônibus. Logo depois de alguns minutos, um navio transatlânico virou a esquina; o destino era aquele que servia à melancia: Lecce - Itália. Porém o navio não tinha escadas e a melancia havia sido amarrada no marco de madeira do ponto. A única lembrança eterna da Itália que lhe ficou foi uma folha do Corriere della Sera que desprendeu-se de uma das cabinas e cubriu-a por toda a eternidade.
O navio foi embora e a esperança que se lhe vislumbrou à melancia virou um cruento remorso de estar fixa ao ponto de ônibus, coisa que até então aparecia-lhe como normal.

Il melone d’acqua

In un viale aggitato di una grande città, un melone d’acqua stava sulla fermata. Dopo qualche minuto, una nave transatlantica appare all’angolo; il destino era proprio quello che serviva al melone: Lecce - Italia. Però la nave non aveva la scalina e il melone era preso accanto il poste di legno della fermata. L’unica rimembranza eterna dell’Italia che gli restò, fu un foglio del Corriere della Sera e lo coprì per tutta l’eternità.
La nave se ne andò e la speranza che ribrillò il melone diventò crudo rimpianto d’essere fisso sulla fermata, cosa che fino allora gli pareva abbastanza normale.

domingo, agosto 15

A música

Achei no Wagnermania (http://www.wagnermania.com) a letra do trecho d’«O Holandês Voador» que inspirou esta beldroega.

Matrosen des Norwegers (trinkend)

Steuermann! Laß die Wacht!
Steuermann! her zu uns!
Ho! He! Je! Ha!
Hißt die Segel auf! Anker fest!
Steuermann, her!
Fürchten weder Wind noch bösen Strand,
wollen heute mal recht lustig sein!
Jeder hat sein Mädel auf dem Land,
herrlichen Tabak und guten Branntwein.
Hussassahe! Klipp' und Sturm' drauß -
Jollohohe! lachen wir aus!
Hussassahe!
Segel ein! Anker fest!
Klipp' und Sturm lachen wir aus!
Steuermann, laß die Wacht!
Steuermann, her zu uns!
Ho! He! Je! Ha!
Steuermann, her trink mit uns!
Ho! He! Je! Ha!
Klipp' und Sturm' He! sind vorbei, he!
Hussahe! Hallohe! Hussahe!
Steuermann, Ho!
Her, komm und trink mit uns!

Márcio, conto contigo para uma tradução, já que meu alemão não passa do «trink mit uns» (beba conosco).

sábado, agosto 14

Dum tempo, dum país...

Houve um tempo que o dinheiro desvalorizava-se mui rápido e a cada seis meses lançavam uma nova cédula para comportar a avalache de zeros. Houve um tempo que se entrava nos ônibus pela porta de trás. Houve um tempo no qual abundavam as cafeteiras «Monarcha» e toda padaria por mais rastaquera que fosse tinha uma. Houve um tempo que existiam passagens de nível no trecho leste da ferrovia. Houve um tempo no qual cantávamos o hino nacional todo dia antes de entrar para a aula. Houve um tempo no qual fui feliz, num país que eu conhecia. Hoje já não mais...

Existiram vitrolas e discos de vinil, domingos ensolarados. Macarronadas.

Hoje tudo é efêmero e violento; mas não essa violência lugar-comum, que abunda nos jornais, mas sim uma violência visual e sonora, uma violência contra nossa memória e nossa cognição, uma violência contra o direito de não querer comprar.

domingo, agosto 8

Novas

Estejais ledos!
Mudo-me com minhas náuseas, enjôos e correlatos para este novo sítio, mais apropriado e creio menos problemático do que o Weblogger.
Deveria eu ter mantido o nome, Mal-estar? Decidi mudar: primeiro, sempre gostei de Wagner, e o primeiro CD que ganhei (um daqueles «Tenores» da revista Caras - hein?) e na última faixa tem um trecho d’«O Holandês Voador», ou seja, essa música volta e meia volta à minha cabeça, e fora que a minha avó tinha como vizinho lá no Ipiranga um senhor alemão que bebia até não poder mais e depois ligava essa mesma música no último volume e punha-se a reger uma orquestra invisível às cinco da manhã, de cima do muro.
Então, venho-me de mala e cuia para cá.