sábado, fevereiro 26

Nove meses em pedaços módicos

Interrompo o nascituro romance e aproveito a minha última semana de banco para prover-vos dumas historietas metidas a engraçadinhas que pude coleccionar nesses nove meses passados. O fato lamentável não é o péssimo estilo ou a linguagem mal alocada, mas sim que são todos fatos reais.
Extratos e higiene
Dia de pagamento. Agência lotada, gente impaciente. Os que vão ao banco, a população civil quase sempre qualificam os funcionários de banco como «moles», «preguiçosos» e outros tantos elogios, como o totêmico animal lesma. Na fila, uma boa vintena - no mínimo - de cenhos franzidos, mãos impacientes e nervosas, pigarreadas vindas de todos os lados. Cara fechada de todos, indelicadezas aspergidas com larga mão; meias palavras.
Era um dia desses; o setor de atendimento, embora não tão cheio, é sempre atarefado, já que é o poço das veleidades dos clientes, visto como se fosse o país das maravilhas - ou o corredor polonês? Realmente, era um dia em regra; caixas cheios e setor de atendimento igual. Eu me desdobrava para por termo a uma operação de empréstimo; sempre começo devagar, com uma morosidade, digamos, burocrática, porém, com o escorrer dos minutos a cara de nada dos clientes e o olhar dissimulado de cachorro chorão, começam a deixar-me nervoso e procuro despachá-los o mais rápido quanto eu puder. A certa altura, com uma dessas peças abundantes sentadas diante de mim, procurei movimentar-me o mais rápido possível, para evitar de ver-lhe a face por muito mais tempo; precisava eu duma informação e dos dois terminais do hemisfério ocidental da agência estavam ocupados. E éramos três funcionários.
A solução foi recorrer ao terminal soviético, ou seja do outro lado, o terminal da tesouraria. Enquanto fazia a travessia de míseras jardas - cujo checkpoint era um desses horrendos bebedouros a galão, presentíssimos hoje pelos locais públicos, salas de espera principalmente -, fui interpelado por um curioso senhor, um misto de Mister Magoo com Getúlio Vargas; olhava-me raivoso do seu metro e meio de altura, quase punha-se nas pontas dos pés. Mesmo eu não sendo um colosso de altura com os meus um metro e oitenta e dois centímetros, tive de abaixar a cabeça para olhá-lo. Como seu olhar cortante continuava a agir e ele, com os lábios retesados e um papelucho comprido e amarelado simplesmente não falava, resolvi perguntar:
- Senhor, que ocorre?
Ergueu-me o papel até quase o nariz. Era um extrato, interrompido. E pronunciou carregadamente, apontando para a máquina de auto-atendimento:
- Acabou o papel!
- O que? - perguntei, como quem não entendera, num - confesso - nítido pouco-caso.
- Ah, acabou o papel... - voltei-me num tom de voz simpático - Entonces, limpa com jornal...
- O que? - voltou-se brusco.
- Nada, já vou avisar a tesoureira. - respondi e esgueirei-me pela tesouraria.
Depois daquele instante, breve instante, fiquei o resto do dia com um leve sorriso preso nos lábios; sorriso que guardava uma gargalhada, não solta por mero pudor e amor à própria existência. Enquanto afastava-me do homúnculo, a tesoureira já se mobilizava com os rolos de fita para o mesozóico cash.
Matemática burocrática
Às vezes, quase sempre, o «sistema» dava algum tipo de guasto que nos impedia das coisas mais óbvias, como por exemplo, a emissão dum abominável contrato de cheque especial. Quando ocorria tamanha boçalidade electrônica, a única salvação possível era a recorrência aos formulários impressos; e como tem de ser em duas vias, era necessária também a recorrência ao segundo melhor amigo do burocrata: o papel-carbono; sim, o segundo, pois os primeiros são os seus carimbos.
Dias desses, ocorreu uma boa: folha sobre folha; mas e agora, onde está o papel-carbono?
- Viste por acaso o papel-carbono? - perguntei à minha colega de trabalho.
- Hum... na gaveta de baixo, aí, na segunda... isso; tem um envelope. Esse mesmo...
De posse do envelope, enfiei a mão dentro e comecei a puxar a folha.
- Esse é só um pedaço... uns três-quintos... não serve.
A mão voltou para o envelope. Outro pedaço.
- Um-terço. Também não dá...
Volta a mão.
- Oito-décimos... nada mal; falta só um pouco.
A gerente, de escuta, não pôde deixar de ouvir e rir.
- Vais bem de fração! - rebateu-me a minha colega. - Agora, carbono inteiro que é bom, nada, né?

Telefone
A maior maldição que havia naquela agenciazinha eram os telefones; três linhas que apitavam o dia todo. E duas justamente do nosso lado, tocavam simplesmente o dia todo e sempre nos momentos mais inoportunos. Do lado-de-lá da linha, sempre as perguntas mais obtusas: «quanto está o meu saldo?», «a senhora não conhece o serviço de disque-saldo?», eu costumava responder; «não sei usar; você pode dar uma olhadela pra mim?»; «certo», rangia eu, «qual o número da conta?»; «ah, eu me esqueci; não dá pra ver pelo nome?». Fora os telefonemas mais estranhos: «Caixa Estadual de Pecúlio», atendia eu; «ah, bom-dia... você pode me dizer se tem muita gente na fila?». A primeira vez que ouvi essa pergunta, fiquei como se atropelado por um caminhão, atônito: «como é?»; «se tem muita gente na fila...». Com o tempo, aprendi a tratar desses casos; certa vez, há não muito tempo, uma dessas acéfalas telefonou e fez essa pergunta, eu: «não, pode vir que está vazio!». Mentira, a fila estava para fora; chegada a moçoila, foi direto ao atendimento tirara satisfação. Apontou para mim:
- Foi com você qu’eu falei no telefone agora?
Conheci a voz esganiçada imediatamente.
- Foi sim.
- Você me disse que ’tava vazio! - rugiu a funcionária pública.
- Pois é, vê só que coisa - respondi sentado, sem me distrair do que eu estava fazendo -; vieram todos num bolo só... eles são assim, tomam a agência de assalto...
Ou então quando as pessoas queriam resolver pelo telefone o que somente poderia ser feito pessoalmente.
- Caixa Estadual de Pecúlio, bom-dia.
- Bons-dias; eu queria fazer uma transferência da minha poupança pra minha conta-corrente e fazer um doc pra minha conta no Itaoca.
- A transferência de poupança para conta-corrente o senhor faz no auto-atendimento; o doc tem de vir aqui pra fazer.
- Não dá pra fazer por telefone? Que absurdo! No Banco Ceausescu fazem!
- Impossível; é necessário que se assine o doc.
Depois da explicação, despedi-me e pus o fone no gancho. Dali uns dez minutos, o telefone tocou de novo: era o mesmo correntista.
- Puxa, não dá mesmo pra fazer o doc sem ter de ir aí...?
O nosso cash
A agência era simplesmente um ovo. Nada mais cabia, o espaço era extremamente exíguo, o que salvava as nossas vistas das palúrdias faixas promocionais de metros e metros de plástico amarradas entre as colunas. Não tínhamos colunas. Pelo problema do espaço, mantínhamos ainda um terminal de auto-atendimento - o anglicizado cash - dos primórdios da informatização do banco, tanto que na minha opinião, ele deveria ser mantido como um monumento, porque não numa praça?
O grande problema é, que pela idade e o uso contínuo, o equipamento começou a apresentar defeitos dos mais variados. Certa feita, quando a tesoureira quando terminou de abastecê-lo e foi fechá-lo, vistoriou os mecanismos e empurrou toda parafernália para dentro, como sempre; nesse interim, algum circuito entrou em curto provocando uma chuva de centelhas acompanhada de uma coluna de fumaça preta. Certo que antes desse prodigioso fim de ato, a tesoureira já estava por trás do balcão, a uns dois metros de distância, no mínimo.
O mecanismo no cash é assaz curioso, quando é necessário carregá-lo com as notas ou consertá-lo, o mecanismo sai sobre um trilho e fica exposto, na frente da máquina. Mecanismo esses que consiste numa espécie de caixa metálica, cuja lateral e cheia de engrenagens interligadas; fora um folezinho que dá «ares hidráulicos» ao engenho. Há ainda o barulho absurdo; quando saem as notas, a impressão que se tem é que foi aberta a porta do inferno. Os comentários irônicos entre nós mesmos, funcionários, era inevitável:
- Esse é do tempo do imperador!
- Que? É do neolítico.
- Olha, eu acho que ele foi montado com os restos de um panzer alemão...
- Também, se os Estados-Unidos descobrem que nós temos uma máquina desta, nos bombardeiam.
É uma máquina terrível, que parece alimentar-se das injúrias e gracejos que lhe são dirigidos e em resposta trava o dinheiro, come os extratos, engole os cartões; parece pura birra. Empaca tal-qual um jumento. Não raras vezes, quando via alguém a tentar tirar dinheiro, pensava comigo, justo quando começava o barulho; e se invés de dinheiro, a máquina soltasse uma saravaida de rolhas, por exemplo. Ou começasse a tocar música? Vinda daquele cash, nada era impossível.
Certamente ela sobreviverá a todos nós; mesmo que empoeirada, abandonada num depósito longínquo, quando for substituída por outra mais moderna; praguejará contra os que praguejaram contra ela. E no dia do Juízo Final, ela estará lá, do lado direito, donde há-de vir a jugar credores e devedores.
Ajustando o relógio
Horário de verão. Dias aparentemente mais longos; às 19 horas, o sol ainda mostra sua face fulgurante. Apesar da aparente esbórnia da Madre-Natura, os estabelecimentos humanos continuam a funcionar tal qual, porém adaptados às mudanças de horário, mas mantendo seu horário numérico padrão; então se os bancos abrem às 10 e fecham às 16 nas outras estações do ano, no verão e no horário de verão, continuam inalterados, embora o fuso esteja uma hora à frente.
Certo dia estivo, às 16 e 15, porta já fechada; sona o telefone, puxo o fone do gancho, digo as balelas habituais e o meu interlocutor pergunta:
- Então, meu caro; a que horas está fechando o banco?
- A mesma de sempre - respondi eu, como se fosse a pergunta mais óbvia do mundo -, às 4 da tarde.
- Mas vocês não ficam abertos até às cinco por causa do horário de verão?
Vista à pertinência e à sagacidade da pergunta, fiquei atônito e calmamente repus o telefone no gancho. Fiquei do lado do aparelho, ainda tentando recuperar fôlego; eis que toca novamente.
- Alô? Caixa Estadual de Pecúlio!
- Então, acho que caiu a linha...
- Ah, o senhor de-novo! - respondi - É, deve ter caído...
- Então, porque não fica aberto no horário de verão até às 5?
Não adiantaria eu explicar àquele correntista impertinente que o escopo do horário de verão não era para os bancos trabalharem mais, mas sim economizar energia; optei pela via breve.
- Os horários são os mesmos de quando não é horário de verão.
- Ah! Pensei que ficavam abertos até às 5...
- Não definitivamente não.
Pergunto-me: será que seis horas não são mais que suficiente?
Segunda-feira gorda
Sexta-feira antes do carnaval; olhando para o relógio chinês de plástico, marcando os minutos para que a porta fechasse e por ela não passasse mais nenhum dos tranca-rua que gostam de vir nesses horários. Porta fechada, hora de recolher os cadáveres depois da guerra - é assim que chamávamos a mesa coberta de papéis depois de algumas operações de empréstimo sucessivas e sem intervalos. Sexta-feira e radiosa aurora de um final-de-semana duplo, pela segunda e terça de Carnaval. Pouco depois das 4 e 20, eu já de bolsa aos ombros, toca o telefone. Considerei a minha última tarefa do dia:
- Caixa Estadual de Pecúlio? - respondi com uma voz aparentando cansaço
- Boa-tarde, você pode me dizer se o banco vai abrir segunda?
- Segunda? - perguntei indignado - Não, de modo algum! O banco não vai abrir segunda.
- Como não? - perguntou a esganiçada do outro lado.
Como são todos funcionários públicos os clientes, a chance da minha interlocutora também sê-lo era maior que 90%; arrisquei.
- Porque? Por acaso a senhora vai trabalhar na segunda?!
A pessoa bateu o telefone na minha cara e azedou-me a sexta.

sábado, fevereiro 19

Se um viajante numa tarde de verão...

Se o texto que vos ponho nesta postagem tiver alguma relação com o último, não será mera coincidência. Este de agora foi escrito primeiro, e inconscientemente serviu de base para o outro. Trata-se de uma tentativa de um começo de romance, do projecto que comentei com Dom Orlando. Ainda não tem título, e esse cabeçalho que meti aí em cima, não passa de uma brincadeira, já que o calor e o verão estão presente nos dois.
I
Era verão em Belavoda; ao meio dia, as pedras do calçamento tiritam sob o sol, e às duas da tarde parecem incandescentes. Logo cedo, o calor faz-se presente, mesmo que a noite tenha sido fresca e húmida. Mesmo com o calor, os diretores e dirigentes das empresas e das repartições públicas de Belavoda fazem questão do traje social impecável: calça, camisa, gravata e colete. Os bondes com destino à praça Czernoczékow descem a ladeira do Comércio com gente engravatada até no estribo, e aquelas pessoas de pé, com as gravatas esvoaçando e batendo no rosto do passageiro de trás, é uma das cenas mais pitorescas da Belavoda capital; ao turista desavisado, pode parecer peça publicitária de loja de departamento. «Somos europeus», dizem os governantes, «temos de dar o exemplo. Ou achais que somos gentes de África para andar de tanga?!».
Essa citação das «gentes de África» vai bem para os britânicos, que têm um império colonial, e até para os franceses. Agora, a pequena Letávia, em plena Europa Oriental, cravada entre a Polônia e o protetorado dos Sudetos, a África era um espaço onírico. Talvez os trabalhadores, após o expediente, refastelados na grama do Parque Central, às margens do pequeno Tjevá, sob o olhar fulminante da estátua de bronze do imortal da literatura letava, não pensem na África, nem na guerra que se desenvolve ao norte. Afinal, a Letávia não é a Polônia. Sim, embora eslava também, mas os ventos dos pan-eslavismo já passaram e os alemães não têm o que vir cheirar aqui.
Há alguns dias, o Marechal Beznjakovicz tranqüilizou a população com um pronunciamento em cadeia nacional pelo rádio - e depois transcrito pelos três jornais do país - no qual declarou a Letávia neutra e intocável, como já sancionado pela Câmara Nacional. Beznjakovicz está no poder desde 1919, quando, por um plebiscito estipulado pelo Tratado de Versailles, a Letávia optou pela independência ao invés de ser província da nascente Tchecoslováquia; calcinou-se do domínio austro-húngaro e nele via os tchecos. Beznjakovicz lembra um pouco Pilsudski, principalmente pelos bigodes.

sábado, fevereiro 12

O bancário e a incrível invasão do país vizinho

Um dia qualquer, uma manhã como qualquer outra. Um sol de verão já refulgia pela vidraça. Ao longe, atrás do pequeno verde do parque, a cúpula de cobre recém limpa de uma igreja brilhava festivamente. As maritacas voavam; os prédios eram o de sempre, aquela obscena silhueta. Lá fora, apesar de ser dia-de-semana, reinava uma certa paz, como um meio feriado. Em compensação, na agência Guadiana do Banco da Nação, esquina da rua Guadiana com a rua Volga, a situação era a mesma de todo dia, gente mal-acostumada com a lei do mercado querendo ser atendida rapidamente e querendo mundos e fundos. Gente mal-educada, funcionárias de repartições públicas vizinhas, como do Instituto de Profilaxia da Síndrome de Einsenstaff-Boilard «Prof. Alexei Silveira», ou simplesmente Instituto Alexei Silveira, ou da Intendência de Vigliância Sanitária, Profilática e Epidêmica, vinculada ao Ministério da Saúde Pública (Ministério inclusive somente a umas duas quadras do banco, na alameda General Szertéhély), gente que quer ser tratada como rei e não merece mais do que as pessoas lhes atirem alguns copeques de esmola.
Dentre os vinte-e-cinco atendentes da agência do Banco da Nação (cujo nome real era Banco de Depósitos e Caixa Econômica Geral da Nação L...-ênia, também conhecido pela infame sigla de Badecegenal, abandonada oficialmente devido ao trocadilho com nomes de remédio, principalmente uma certa pomada para hemorróidas muito popular), um em especial, a sim não lhe agradava nem um pouco aquela situação. Cada um funcionário-público que se sentava à sua mesa, o estômago lançava-lhe uma jatada contra o esôfago; e por mais que ele tentasse manter um tom seco e burocrático, com os óculos acavalados na ponta do nariz e cenho franzido, o energúmeno funcionário-público continuava a fingir e forçar uma intimidade forçada, como se fosse um estupro.
- Nesse seu demonstrativo pouco cabe, senhor. Não tenho idéia de quanto o banco - sempre ele puxava, ou melhor jogava a sardinha para a brasa do banco - poderá lhe emprestar.
- Então você vê aí pra mim... bonito esse teu calendário de mesa! Você não tem um pra me dar?
Ele era extremamente cioso com tratamento, se tratava a pessoa por o senhor, a senhora e lhe dava os pronomes de terceira pessoa, não admitia o tratamento por você e os complementos de segunda pessoa. Para ele, era tratamento familiar ou entre amigos. Certa vez deixou escapar entre dentes:
- Eu não sou seu amigo!
- Que?! Eu não entendi! - respondeu o funcionário-público.
- Nada! - estúpido - Vou simular o seu empréstimo! O empréstimo para o senhor!
A enfase que nosso bancário deu ao pronome possessivo e a forma de tratamento foi tal, que quando se afastou para fazer os cálculos, o funcionário sentado além de não ter capitado a mensagem, olhou para outro funcionário que aguardava comodamente sua vez de ser atendido, e girou o indicador em volta da têmpora.
Naquele dia de verão, a atmosfera dentro da agência estava simplesmente insuportável. Lotada, ar-condicionado roto e sem previsão de conserto. Apesar do traje social, os funcionários suavam como se fossem uma nascente. Os funcionários-públicos impacientíssimos na espera, agitavam nervosamente jornais, prospectos, folhetos, promovendo um farfalhar que tiraria a concentração dum monge budista, sendo que na L...-ênia poucos buditas havia; são todos muito ocidentais para isso, ainda mais naquela capitalzinha provinciana, com as suas igrejinhas com cúpulas de cobre, brilhantes ou esverdeadas. Nosso bancário estava lá, numa mesa de cedro-eslovaco, na sua mesa de cedro-eslovaco, a mesma mesa de cedro-eslovaco que o acompanhava há dez anos. Não bastasse os farfalhar irritante, os malditos funcionários-públicos começaram os diabos das suas conversas suburbanas e provincianas - Deus! como era possível aquele tipo de conversa suburbana naquela cidadeca promovida a capital? Erro de Ladislau V, mas agora foi, estamos na República há uns bons decênios - e como estava cheio o metrô e como é cara a passagem de ônibus e como subiu de preço a pomada para hemorróidas. Aquela do Laboratório Central? Sim aquela mesmo, que tem o nome parecido com a sigla do banco. E a sogra falando mal da nora e vice-versa; e fando mal dos vizinhos.
O nosso bancário atrelou-se à mesa, agarrou nas pontas pelas duas mãos para conter-se; estava ficando irritado.
- Então, - rosnou ao pascácio-público sentado à sua frente - quanto o senhor vai querer?
Foi ficando vermelho. O rumor das conversas (você viu a Rosinha, do Financeiro? Casou c’o Borbas, da Seção de Transportes! Sério? Aquele bicho horroroso? Ha, ha, ha!) e farfalhar dos folhetos, mais o calor estavam entrando pelas suas veias. Começou a tremer.
- Eu, seu moço? Eu queria uns cinqüenta mil... quanto é a taxa de juro?
Estava quase babando. E aquela marcha militar lá fora? Juntou-se à babel de ruídos por alguns instantes mas bruscamente parou. Ficaram somente os ruídos de dentro do banco.
- Vou pegar a tabela.
Levantou-se e sentiu a confluência de toda bronca do mundo em si. Seus olhos chamenjantes chamuscavam. De verde estavam quase roxos. Olhou aquela cena deprimente: gente sendo atendida e a espera lotada por umas quarenta pessoas. Não ia agüentar. Não agüentou.
- Calem a boca... - murmurou. Tanto que nem a pessoa que estava na sua mesa ouviu. - Calem a boca! - veio já num tom normal.
- Que? - reagiu por osmose o boçal da cadeira.
- Calem a boca! - disse o nosso bancário numa altura ouvida já num raio duns quatro metros. Algumas pessoa já o olharam assutadas pela imprevista interrupção.
- Como? - balbuciou uma senhora na mesa ao lado, nitidamente ofendida e intimidada.
- Calem a boca!!! - estou num grito desumano que quase lhe estoura as veias do pescoço.
Todo o saguão da agência parou. Duzentos e cinqüenta metros quadrados de pedidos e empréstimos; duzentos e cinqüenta metros quadrados de silêncio atônito. Os encarregado por de trás das divisórias de vidro nem tiveram tempo de levantar-se. O gerente olhava aquele funcionário como se visse o próprio Demônio diante de si. A agência toda sentada, somente nosso bancário de pé. Alguns segundos mais de silêncio assustadiço.
- Eu... - continuou com uma voz, leve mas carregada de raiva - eu, odeio, o-de-io todos, todos, todos vós. Vós me dais nojo! - fez como se fosse vomitar, inclinando-se levemente; seus olhos estavam injetados de sangue. - Todos, todos! Sois todos uns vermes! Eu não ganho suficiente para agüentar as vossas súplicas, agüentar os vossos desaforos! Vermes! Vermes abjetos, repugnantes, rastejantes! Vis!
Uma pessoa tentou falar alguma coisa, com a voz entrecortada, uma indignação:
- Você... vo-cê não pode fa-falar assi-sim con-no-nosco...
-Cal’a boca qu’eu não pedi a tua opinião. Dez anos eu agüentei os vossos choramingos! Agora... - fez uma pausa e respirou - agora, sinceramente, eu quero que todos vós ides prà puta que vos pariu! - mais alguns segundos em silêncio - Muitíssimo obrigado. Fez uma reverência à muda assistência. Pegou seu casado das costas da cadeira, sua bolsa e caminhou para a porta. Virou-se ainda para fazer uma última reverência à platéia, mas quando voltou-se, ouviu-se uma agudo toque de trompa. Todos viraram seus olhos para a vidraça. Na rua, uma companhia de infantaria toda na rua, desfilando. Não era o exército da L...-ênia, era a bandeira do país vizinho e inimigo mortal. Todos esperavam uma guerra próxima, mas pelo jeito não haveria já que as tropas inimigas estavam na capital; pensar que há meia hora dizer que seriam invadidos pareceria uma sandice. Os soldados chutaram a vidraça e entraram. Todos os que estavam sentados jogaram-se das cadeiras para o chão. Somente nosso bancários continuava de pé. Um homem destacou-se do regimento e veio ter com ele.
- E você? Quem é? Que faz aí de pé?
Pelo uniforme diferente do resto da tropa, mas da mesma cor, deduziu-se que fosse um oficial. A tropa estancou atrás dele.
- Eu? - respondeu o bancário - Sou somente um doido varrido funcionário de banco... e o senhor?
- Petulante... - ruminou o militar admirado - Eu sou o general-de-brigada Antalnovicz!
- Ótimo... vê esses idiotas aí dentro? São todos do senhor... não me precisa passar recibo. Quanto a mim, um a mais ou a menos não faz diferença. Não me sinto bem e vou para casa, se o General me der licença... - começou a deslocar-se na calçada, indo em direção à rua Don. As tropas iam cercá-lo quando ouviu-se um berro.
- Quietos! - irrompeu o General - deixem-no ir... vê-se logo que é um homem doente... doente ou louco.
Rapidamente o tumulto na cidade parou, durou umas duas horas. O governo rendeu-se e o país todo passou a ser um Comissáriado Militar de Governança do país vizinho. O melhor de tudo é que os bancos ficaram proibidos de funcionar até segunda ordem. Nosso amigo bancário ainda conseguiu pegar uma farmácia aberta antes do toque de recolher e comprou umas aspirinas. Foi para casa e dormiu um pouco.

terça-feira, fevereiro 8

«Crime e castigo» e «Borís Godunov»

Lendo Crime e castigo e tendo ouvido parte da ópera Borís Godunov, de Mussorgsky, pensei comigo, Crime e castigo daria uma ópera excelente, melhor ainda se for em russo como Borís Godunov. Ópera em russo, a mim parece interessantíssima:
Лейтесь, лейтесь, слёзы горькие!
Плачь, плачь, душа православная.
Скоро враг придёт,
и настанет тьма,
темень тёмная, непроглядная.
Горе, горе Руси.
Плачь, плачь, русский люд,
голодный люд!

Imaginai a ária na qual, Ródion Raskólnikov mata Aliena Ivánova. Seria simplesmente genial.

domingo, fevereiro 6

Cinema

Filme polêmico, rodado no maciço dos Rópodes e na costa do Mar Negro, execrado pela crítica e rechaçado pelo público: As estirpes infames.

Problemas hodiernos

Fragmentos de um diário disperso dentro duma bolsa à tiracolo preta.

[...]
O meu problema é que não me conformo com o rumo que toma a Civilização, tornamo-nos - mais do que nunca - uma Civilização usurária e financista, pensa-se somente naquilo que pode trazer lucro. O pior não é exatamente esse estado de coisas, mas também a passividade e a alienação das pessoas frente a tudo isso. Vivem como máquinas: a perspectiva de futuro me angustia profundamente. Tudo se vende, tudo deve ser comprado, e a grei estúpida, moldada e estrangulada submete-se pacificamente.
No passado, o papel da dominação ideológica era da Igreja, passou posteriormente para os Estados Nacionais e hoje pertence ao Capital. Talvez fosse esse estado do Capitalismo contra o qual nos alertavam os teóricos do Socialismo; e, para onde corre tudo isso? A situação actual mostra um horizonte estrangulado; no caso dos bancos - que bem serve a exemplificar - há «x» bancos no dito mercado brasileiro, que vivem a degladiar-se, como nenhum conseguirá jamais impor-se de maneira cabal e definitiva, essa concorrência absurda, ridícula e suicida cuja única coisa que busca é o lucro sem fronteiras e a única coisa que traz pressão e estresse à menor e mais baixa parte do jogo, a base da pirâmide: o funcionário; e não somente o sistema bancário, mas de todo - e cada vez maior e onipresente - setor de serviços, que conseqüentemente vem substituindo as bases da Civilização, usando para isso o ignorantismo, desmotivando que o indivíduo busque elucidar-se e informar-se, entupindo-o de informação fátua e vácua, por isso o avassalador sucesso dos «espetáculos de realidade» (reality shows), programas de auditório aviltantes, esse é o substrato que substituiu a tríade Deus-Pátria-Rei dos séculos anteriores, abalado primeiramente pela Revolução Francesa, excelente inicialmente, mas donde brotou o germe que deu origem à Civilização agioteira actual: a Burguesia; tomando esta o poder, com seu rancor e sua fome de ouro, acabou em três-tempos com os ideais da Revolução, e terminou por reestabelecer o Império Frances em seu favor. Um França inchada jamais vista.
Talvez, para que seja possível um reequilíbrio civilizatório, seja necessário à Civilização um regresso parcial, a volta de um tênue e salutar senso de nacionalismo, por exemplo, para que o indivíduo se sinta novamente parte de um todo, e conseqüentemente um Estado que mantenha isso. Certamente me criticarão pela questão do Estado forte; ela é problemática, pois visto experiências anteriores, pode sair de controle, pois também, por outro lado a dissolução imediata do atual estado-de-coisas, degringolaria para a vigência da «lei do mais forte» tal qual nas eras pré-históricas.
[...]
O modelo actual - principalmente urbano - consiste a atrelar a nossa existência (dedicar até um terço ou mais do dia) não somente à nossa manutenção, mas directamente - e por maior motivo, desta última - da manutenção do Capital alheio; um único empregado pode render num mês cem vezes o salário que lhe é pago sem receber por isso um único centavo a mais, e ao contrário, se pungido a produzir cada vez mais. Outra questão, coagido e preocupado em manter o seu sustento, geralmente cede. E nisto, baseado na famigerada lei da Concorrência pela qual se rege o mercado transforma num círculo vicioso, onde o patrão, por melhores que sejam os resultados somente saberá cobrar, mais e mais, juntando capital às custas do suor alheio. Daí a repugnância que causam «cursos» e pseudociências provindas desse raciocínio de acumulação por fustigação da força de trabalho, como cursos de Administração, os polêmicos cursos de vendas, que visam a espoliação do próximo enganando ambas as partes, o vendedor que acredita estar prestando um serviço ao cliente (nos casos mais ingênuos) e ao cliente que acredita ser beneficiado.
[...]
O estado de eterna concorrência, não somente entre os entes comerciais desenvolvem-se, mas costuma trazer a inimizade e a desunião na parte que justamente deveria unir-se contra a exploração: a massa de funcionários. Acabaram por enxergar o igual por rival que vai tirar o pão da sua boca, mantêm-se em conflito e desunidos, competindo entre si, trazendo mais capital ao empregador. Evidentemente que, se os funcionários esgoelam-se para produzir pelo salário pago, para que novas contratações? o funcionário fustigado pela chibata do patrão e pela concorrência invejosa do colega é altamente lucrativo na actual conjectura.