domingo, março 20

Cantos e recantos

Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena.
F. Pessoa, Mar Português
Há algum tempo, logo no início do ano, combinei com Cristiano de comer alguma coisa numa padaria, a dita Sabor do Trigo, Vila Carrão, Conselheiro Carrão esquina com a Dentista Barreto. Marcáramos às 19, mas como eu estava ainda a trabalhar no banco, terminei por chegar muito cedo. Descendo no metrô Carrão, tive tempo de ir a pé, o que me valeu uma tarde de imersão nas minhas lembranças e a vinda à tona de nostalgias. Com alguns bairros, tenho uma estranha relação, como se fossem outro país, e embora eu tenha circulado muito pelo Carrão, tenho estranha percepção lá; como se estivesse em Portugal; apesar de nunca ter estado em Portugal, é a associação que faço. Talvez porque a Casa dos Açores é lá, justo perto daquela padaria.
Desci do metrô e andei pela Radial, num ponto, percebi que haviam tirado a velha passarela da Estação Sebastião Gualberto, uma passarela de aço sobre a Radial até a linha férrea, do outro lado da rua. Quando eu era menor e passava de carro ali, com a minha família, a caminho da casa da minha vó, acha que todo aquele complexo era sempiterno, sempre estivera ali e sempre estaria, e apesar de toda a minha racionalidade, foi realmente um choque descobrir que nem a passarela e nem a casinha da administração - tal-qual palafita sobre a ferrovia - não mais existiam. Procurei pelo chão com os olhos algum vestígio: ei-lo, as pontas de uma viga de ferro, exaustivamente martelada; mas parecia que queria brotar, que as marteladas foram insuficientes e que dali, toda a estação rebrotaria.
Continuei andando, passei pela estrutura abandonada na esquina com a António de Barros; estrutura que está do mesmo modo desde a mesma época qu’eu passava a caminho da casa da vó; mas os metais foram pintados com zarcão, vê-se de longe. Aquilo na minha mente, não é um prédio - ou o esqueleto dele -, mas sim um monumento. A que? Talvez à incopetência.
Entrei pela Conselheiro e ali, o pequeno trecho na qual ela se torna mão única, uma calçada lúgubre, sinos começaram a repicar. Quase tive uma epifania, eram seis e qunze da tarde, corri até a esquina, mas os sinos já haviam parado. Era aquela igreja salmão, de cúpula de cobre, a São João Batista - que para mim vai ser sempre São João Crisóstomo, e o motivo eu não sei por quê - cuja torre vê-se da Aricanduva, marcando a leve subida daquele trecho, e que domina a vista de quem vêm pela Conselheiro Carrão, do bairro para o centro. Lembranças doutros tempos.
O Carrão na minha mente tem uma geografia bem curiosa, mas bem nebulosa. Embora eu desconheça quais são seus limites reais, o meu Carrão começa na esquina da XIX de Janeiro com a Taubaté e termina um pouco antes da Radial. O Carrão jamais encontrou a Radial, seu limite oriental é a Aricanduva. É uma espécie de Carrão mítico, cujos limites atropelam bairros inteiros, como se fosse o império de Alexandre. Sei que os bairros de baixo, às margens do rio Aricanduva têm outros nomes, e acima da Conselheiro, subindo o acentuado aclive em direção à Igreja de Santa Isabel, também, como a própria Vila Santa Isabel; mas para mim, são um «Carrão alpino», o último pedaço de Carrão antes da Vila Formosa, seguindo pela rua Lutécia. É o Carrão dos meus tempos de adolescência, que não passaram há tanto tempo assim, mas me parecem já muito longínquos. Um tempo de pracinhas redondas perdidas entre ruas mortas e calmas, com a vista sempre dominada pela igreja da Santa Isabel. Talvez outro motivo da associação com Portugal: é uma igreja majestosa, é possível vê-la de vários lugares e da sua torre se vê uma grande área. Uma das vezes que subi, era o domingo do tapete de serragem, que era feito no inverno.
Por coincidência, a última vez que estive lá - a acender uma vela para uma promessa - fazia um frio pesado, do alto da rua da igreja, esquina com a Picinguaba, daquela esquina ligeiramente alta e tristonha, como toda esquina dos bairros de subúrbio antigos, que têm um misto de passado e decreptude, senti que o mundo cabia no bolso do meu casaco; olhei para a torre da igreja, que velava ameaçadora sobre o céu cinza-chumbo, como se sempre estivera ali, desde antes do início dos tempos, e sempre vai estar, sendo a sede o tribunal do Juízo Final.

1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Comentário afrescalhado:
Fantástico! A passarela fez parte da minha infância também, de uma forma muito mais ativa aliás, uma vez que eu passava por ela quando ia para a antiga FZL, no prédio da atual UNICID, tratar meus ainda pequenos dentes. Eu pegava um monte daquelas pastilhas vermelhas de dentista e ficava com a boca toda vermelha-sangue.
Mas falemos do Carrão. Eu sei que o Beto e o Cristiano podem falar mais que eu, mas passei uns bons 3 anos transitando naquelas ruas. O salão da Igreja me trás muitas lembranças de algumas festas, apesar de nunca ter entrado nela.
Tem mais, mas estou me estendendo demais.
Fiquei deveras emocionado com o seu relato. Não, eu não chorei, mas o tratamento dado ao tema foi realmente soberbo. Fale do Brasil, ou melhor, da Vila Matilde, caríssimo Conde. Autorizo-te também a falar de meus domínios, ó grande nobre, que, além disso, é um rapsodo.

Saudações cordiais

segunda-feira, março 21, 2005 12:46:00 da manhã  

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