segunda-feira, junho 13

Diário de viagem (III)

A noite mais longa do mundo

No balcão do hotel, o atendente, loiro e sonolento; apresentei-lhe o voucher depois do habitual boa-noite.
— O senhor preenche esse formulário pra mim, por favor.
Era um formulário da Embratur. Apossei-me da caneta sobre o balcão e comecei a garranchar os meus dados pessoais, o de sempre. O atendente me vira acenando para cima, e provavelmente ouvira também as meninas chamando.
— He, he. Elas tinham ligado no momento exato que o táxi inclinou aqui, acredita? – disse o balconista.
— Sério? – fiz eu num misto de fastio, surpresa, cansaço e nervoso.
— Sim, sim. Ligou uma das moças e disse: “Boa-noite, você sabe se o Sérgio, Sérgio De Venardis já chegou?”, aí eu disse: “não, mas tem um táxi inclinando na porta”.
— Ha, ha. Que engraçado… - disse eu num misto dos sentimentos citados, acrescidos de um suspiro.
O balconista deu-me a chave na mão, era o 213; perguntei em qual quarto estavam as meninas.
— No 411, senhor.
— E esse telefone – apontei para um aparelho em cima do balcão de mármore – faz ligação pra lá?
— Faz sim, é só discar o número do quarto direto.
Bem, a minha canhestreza com aparelhos impediu-me de conseguir completar a ligação na primeira tentativa; mas houve sucesso na segunda.
— Ciao, buona sera! – disse ao atenderem.
— Ciao, ecco; sei arrivato finalmente.
Era Juliana. Combinei de deixar as malas no meu quarto e subir para cumprimentá-las. Quando repus o fone no gancho, minhas malas não estavam mais ao meu lado, girei a cabeça descompassadamente várias vezes até ver que estavam na mão do funcionário do hotel que me esperava na porta do elevador.
O que esperar dum hotel? Certo que não é a nossa casa; mas quase todos tem mania de carpete dentro do elevador, o pior é que o fluxo de gente em pouco tempo encarde o carpete e o do piso do elevador parecia o pêlo dum poodle imundo.
— Eh, os hotéis aqui parecem bem melhores que os de São Paulo. – comentei girando a cabeça e já vendo os botões gastos e friso solto na parte de baixo.
— … ah é, he, he! – fez o atendente usando das suas prerrogativas fáticas.
O elevador com grande estrépito parou-se no segundo andar; o rapaz foi na minha frente e abriu o quarto acendendo a luz.
— É aqui. Se precisar de algo, é só discar 9 que cai no balcão, lá embaixo na recepção.
O quarto tinha aquele cheiro característico de coisa antiga, talvez pelo carpete, ainda mais de hotel, ninho de ácaros. Apesar de eu ressaltar esses detalhes, é coisa com a qual me divirto observando.
— Po’ deixa’. Se precisa’ eu telefono.
— Boa-noite.
— Bem, eu vou com você, pois vou passar para conversar com os meus colegas. – usei de tom acadêmico, vai saber o que se passa na cabeça de um funcionário de hotel.
Entramos novamente no elevador, subimos até o quarto e último andar, eu saltei e o rapaz desceu. Hotéis assustam um pouco, principalmente quando você desce no quarto andar que está imerso nas trevas e no seu primeiro movimento fora do elevador, a luz acende. Malditos detectores de movimento. Depois da epopéia do elevador, eis-me à porta do quarto. Bati levemente. Alguns segundos depois e, nada. «Será que é isso mesmo», pensei e olhei para o acrílico afixado na porta, o número batia, mas, nada. Pensei em ir embora, mas senti o rumor de televisão, bati mais forte. Agora sim, veio um «sim?» do outro lado da porta. Era Juliana.
Cumprimentei a todas e as enfastiei com as narrativas do vôo e da turbulência, inclusos os detalhes musicais. Me sentindo mais estúpido do que costume, despedi-me e saí. «A domani.» E no corredor, somente eu e a escuridão, que foi embora no mezanino do andar, quando se ativou a lâmpada.
Eu estava realmente mal, o vôo, o desespero com relação ao dia seguinte, mas eu disse «não!» e peguei o elevador de volta para o segundo andar e desci assoviando o Glória de Glinka. No quarto, o ambiente me pareceu mórbido: duas camas de solteiro, um janelão, um abajur bem mequetrefe. Liguei o televisor e me pus a desfazer a mala, a pôr as roupas no armário para que não amassassem. Liguei o aparelho, para poder ouvi-lo, pois sozinho começo a ficar paranóico; era mais de meia-noite e meia. Tomei um banho e, ao final, puxei da mala os livros que trouxera comigo e o texto que eu havia composto, e comecei a fazer alguns acertos, sentado na cama.
Lembrei-me de acordar cedo no dia seguinte, e para tanto eu colocaria o despertador… mas, onde está o despertador? Eu lembrava de o ter pego, mas agora ele não estava na mala, e eu precisava acordar cedo no dia seguinte. Talvez o hotel fosse como o de Prudente onde eu ficara, a própria central telefônica podia ser programada para fazer o telefone do quarto tocar; mas no painel impresso do telefone, com os números essenciais, não constava nada. Tive de ligar para a portaria e indaguei como poderia fazer; a pessoa que me atendeu disse que eles mesmos que avisavam.
— A que horas o senhor quer que o chamem?
— Cinco e meia… ou melhor, seis.
— 213, né?
— Isso.
— Então até amanhã, às 6.
— Até e ’brigado.
— Nada.
Sentia a minha voz tonta ecoando pelo quarto; voltei para os papéis e para as anotações. De improviso, senti uma vozinha.
¿Como consegues estudiar y veer televisión al mismo tiempo?
Estava tão atordoado que respondi sem perceber.
— Assim, ó.
Quase longo meio minuto depois, levantei a cara dos papéis e lembrei de que não havia ninguém dentro do quarto. Olhei em volta e fui ainda à janela: nada o estacionamento estava vazio e a noite estava pesada sobre o horizonte.
— Que coisa. E posso jurar que ainda foi em espanhol… - murmurei da janela.
¿Que tienes, hombre? ¿No me vés? Estoy acá.
— Merda! ’Tá í, onde e quem? – virei-me já mortificado.
¡Acá!
O som saía do travesseiro. Comecei a aproximar-me.
És próprio lo que piensas, soy yo.
Efetivamente vinha da almofada.
— Puxa, e eu nem bebi – resmunguei – e me parece escutar a almofada falando!
¡Eh! ¡Buenos días! Finalmente comprehendestes!
Voltei para a janela.
— Impossível! Almofadas não falam! – gritei para o travesseiro.
En primer lugar: no grite conmigo, aún no fomos apresentados; en segundo lugar, no soy una ‘almofada’, soy un ‘travesseiro’. ¡E no me mires así, hombre! Parece que nunca vío ningún hablando…
— Mas alfofadas não falam! – rebati.
Mira; los políticos tambiém no deberían hablar, pero hablan… no se porqué éste espanto tán grande tuyo…
— Bem, as almofadas da minha casa não falam…
¡Fuf! Tu casa debe ser un ‘porre’. Nunca oíste aquella música de Juán Manuel Serrat? “Tenía una casa sombría, que madre vistió de ternura, y una almohada que hablaba y sabía de mi ambición de ser cura.”
A almofada cantava.
— ‘Tá, ‘tá bom; mas porque você fala em espanhol?
Soy argentina.
— Mas esse sotaque é peninsular! Cazzo de almofada madrilenha!
Oiga, imbécile: primero, estás mucho nervioso por causa del viaje, por causa del congreso…
— Putz! Mas como você sabe disso?! – espantei-me ainda mais.
Oiga, dígame una cosa, ¿que tienes en la cabeza? ¿Cebollas? Déjame concluír: exceptos todos estes factores, estás cansado, precisas dormir; después, hablo español porque soy una creación de tu cabeza acebollada, hablo por tu consciencia e hablo con pronúncia europea y este vocabulário deficiente porque hablo con TUS conocimientos de lengua española; en suma, somos la misma persona.
Nisso a almofada se lançou contra o meu rosto, e com o baque acordei caído no chão. Eu dormira, tombara sobre as folhas e caíra da cama. Levantei rápido e assustado. Eram quase duas horas; o melhor a fazer era dormir oficialmente, pondo-me sob o cobertor. E foi o que fiz.

Veja ainda
Diários de viagem (II)
Diários de viagem (I)

2 Comentários:

Blogger Érico disse...

CANCIÓN TONTA


Mamá.
Yo quiero ser de plata.

Hijo,
tendrás mucho frío.

Mamá.
Yo quiero ser de agua.

Hijo,
tendrás mucho frío.

Mamá.
Bórdame en tu almohada.

¡Eso sí!
¡Ahora mismo!

(Federico García Lorca)

segunda-feira, junho 13, 2005 6:30:00 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

ma che porca madonna Sergio... il tuo cuscino parlava spagnolo!!
hehehehehe

terça-feira, junho 14, 2005 6:24:00 da tarde  

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