quarta-feira, setembro 28

Carne-de-canhão

— Helmuth, ponha mais poloneses no canhão, jetzt!
Herr Kaptain, não há mais. Pode ser um atendente de telemarketing?

«Tutti morimmo a stento
ingoiando l’ultima voce
tirando calci al vento
vedendo sfumar la luce.»
(F. De Andre, Ballata degli impicati)

Carne-de-canhão é um termo um pouco em desuso. Em desuso porque a sanha beligerante das grandes potências havia se acalmado um pouco (eu disse, havia), mas mesmo hoje, a guerra não é igualitária como fora um dia, quando havia baixas de ambos os lados das fronteiras, em número bem similar, não como hoje, em que morre meia-dúzia de americanos e uma bela centena (ou milhar, pois tanto se lhes dá) de iraquianos, afegãos ou qualquer outro habitante de rincão ignoto.
Naquela época, no Entre-guerras, carne-de-canhão era o povo mandado às trincheiras e à guerra, «morrer pela Pátria»; e – se não me falha a memória – viravam beefsteak tartar, segundo Brecht na Ópera dos Três Vinténs.
Evidente que a guerra existe, mas não como antigamente. É localizada e a Grande Potência só ataca os pequeninos que oferecem pouca resistência por tenazes que sejam; mas o conceito de carne-de-canhão é aplicabilíssimo à nossa mordaz e vociferante sociedade de consumo.
Depois dos comentários que fiz sobre o Programa de bolsistas do Metrô de São Paulo (21 de setembro de 2005, quarta-feira última), ontem outro absurdo berrava das páginas do Diário Oficial. Inclusive, aproveitando a deixa, a propaganda governamental nos tempos pós-modernos é extremamente inócua; principalmente com o Estado a comportar-se como uma empresa privada e a bancar essa tão ridícula responsabilidade social; em suma, o Estado se comporta como a Natura. Fatos alardeados como extremos acessos de bondade do Governo do Estado são somente deveres básicos e essenciais (e mínimos, diga-se de passagem) que negligenciados durante anos, aparecem como uma mão paternalista, uma dádiva.
Para mim, ao contrário, tem o aspecto da esmola dada de má-vontade, o que torna tudo ainda mais revoltante. Mas vamos à notícia: saiu publicado na capa do Diário Oficial do Estado de São Paulo de ontem uma reportagem (1) sobre uma certa Educação para o Trabalho, um programa mantido pelo Senac (2) e pela Coca-Cola Femsa. Transcrevo parte do artigo:

«Grupo de 121 jovens (sic) com idades entre 15 e 24 anos, moradores dos arredores do Parque Estadual Fontes do Ipiranga […] tem um motivo especial para comemorar. Após seis meses de freqüência às aulas do Programa Educação para o Trabalho, receberam (sic) na semana passada o diploma de conclusão do curso. A iniciativa, dirigida a adolescentes cujas famílias têm renda de até dois salários mínimos […]. O programa prevê a capacitação de 300 participantes por ano, que saem do treinamento em melhores condições de enfrentar o mercado profissional. […] Ministrado em horários diferentes dos da escola, é dividido em oito módulos: Estação Qualidade de Vida; Estação Apresentação Pessoal; Estação de Trabalho e Atitude Empreendedora; Estação de Informática […], Estação de Organização e Estética de Ambientes; Estação de Tecnologia das Transações Comerciais; Estação de Recepção e Atendimento a Clientes e Estação de Vivência, que possibilita aos jovens experiências em situações reais de trabalho. […] que os beneficia com bolsa-auxílio de R$ 60,00 mensais. (negritos nossos)

Abstenho-me de comentar a metodologia desse curso a partir desse nomes-chavão tão pós-modernos. O valor dessa pretensa bolsa, revoltante. O prêmio para os cinco melhores do curso é uma vaga de estágio no Senac.
O que mais me dói é ver que nas fotografias, que ocupam a parte central da página, rapazotes e rapazolas felizes. Qual vantagem, Cristo? Isso é a tão propalada responsabilidade social? Parece-me que todas as iniciativas dessa responsabilidade apontam para formar e criam abelhas-operárias capitalistas. Ou só porque são pobres a faixa atingida, não têm direito a ser nada melhor? Até quando as pessoas vão ficar quïetas frente a esses magnânimos e solenes absurdos? Quando o Estado vai voltar a comportar-se como poder público e fazer o que lhe compete, ou seja, a busca por uma sociedade mais justa a partir da representação popular que é, do poder que emana do povo para o Governo, e parar com essas ações que é formação de mão-de-obra barata semi-qualificada para grandes corporações. É formação para carne-de-canhão.
Gostaria de saber que a Coca-cola teria coragem de pagar € 20 mensais para algo similar na Europa; as pessoas a esnobariam. Mas no país dos néscios, famintos e miseráveis, ávidos por argento, é fácil fazê-lo.

(1) Pode-se chamar algo publicado nas capas e contra-capas do Diário Oficial de reportagem? Fazemo-lo por mero bom-senso.
(2) O mais engraçado é lembrar que o Senac surgiu a partir da tentativa getulista de corporativizar a Sociedade durante o Estado-Novo (1937-45), corporativismo no sentido antigo da palavra, nada com relação à governança corporativa, fenômeno moderno, que rima com lambança capitalista.

Grandes ditos: Cartão de crédito serve para passar manteiga no pão. Olavo Setúbal, presidente do Banco Itaú, mais uma instituição chupim agarrada às vossas calças e que usa os telefones para torturar a população com telemarketing de cartões de crédito.

Incendiários Anônimos (eles já puseram fogo no salão da Igreja durante uma crise coletiva): canalhices, Getúlio Vargas, Serviço Nacional do Comércio, mendigos de São Paulo, armamento militar, corrida armamentista, imperialismo, vagas para atendente de telemarketing, velhas.

4 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

eu te receito baudrillard em gotas. funciona que é uma beleza.

quarta-feira, setembro 28, 2005 7:52:00 da tarde  
Blogger Érico disse...

Cruzes, o texto do Diário saiu quentinho da assessoria de imprensa da coca. Com trocadilho. A Estação Final é a que liga as notas de dólar aos papéis estaduais, todos com vestígios - de coca.

quinta-feira, setembro 29, 2005 11:12:00 da manhã  
Blogger Sérgio disse...

É, pode ter certeza que enquanto se lava a cabeça das pessoas, se lava dinheiro em algum lugar não muito distante.

quinta-feira, setembro 29, 2005 12:34:00 da tarde  
Blogger Orlando Tosetto Júnior disse...

Talvez pensassem em telemarketing setorial. "Aí, mano, os cara te descolaro uns cartão da hora, certo? Pronde que manda, véi?". Cor local, Sérgio, cor local.

sábado, outubro 01, 2005 11:53:00 da tarde  

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