sexta-feira, janeiro 28

Heterodoxias

Fui criado num catolicismo frouxo, bem largo; fui batizado, mas optei por não fazer primeira comunhão*. Freqüentei as missas na Igreja de Santa Isabel durante um bom ano e meio, mas não comungava; depois dum período de agnosticismo - dúvidas e recaídas - estabilizei-me num ateísmo que considero até saudável: Deus não me incomoda e eu não o incomodo e assim vamos vivendo. Comporto-me socialmente bem, já que a maioria das pessoas vêem os ateus como uma ameaça à sociedade e uma ofensa à sua fé; se me perguntam qual a minha religião, dou uns volteios; não tenho religião; acredito mas não sigo. Tanto que há poucos dias, uma cliente do banco, à qual eu efetuava um empréstimo, fez-me a fatal pergunta. E ajuntou: «és católico»; «sou», respondi-lhe para não perder o fio da meada. A resposta valeu-me uma medalhinha de Nossa Senhora das Graças banhada a ouro.
Voltando, vejo um certo papel benéfico na Igreja, como patrona e mecenas das artes, principalmente no que tange à Arquitectura, as igrejas são tesouros arquitectônicos, olhai a Sé, a Consolação, a do Carmo. Esse é o papel da religião, uma fé cultural. Também não me incomoda a religião nos seus aspectos místicos - leia-se bem: desde que não me incomodem como fazem (perdão da indelicadeza da citação) os testemunhas de Jeová. Sou vacinado contra conversionites e afectações correlatas.
Nos tempos mais recentes, o catolicismo romano, que era maioria absoluta há vinte anos, vem perdendo terreno - ou rebanho? - aos protestantes. Embora sejam os católicos aïnda maioria, é uma maioria esquálida, cerca duns 80-85%.
Protestante, para um país-quizumba como é este nosso, é um rótulo ingrato: agremia tudo aquilo que é cristão, mas não é católico. Conseqüentemente, um arco que vai da Igreja Luterana à Universal do Reino de Deus, pelo censo são considerados um só, como parte do mesmo espectro. É um problema sério, pois do mesmo jeito que há instituições sérias e confiáveis, como a própria Igreja Luterana, a Anglicana, os Ortodoxos, há esse ramo do pentecostalismo-estripulante (ou quem sabe o pentecostalismo-pulandinho) desses pastores histéricos e ávidos do vil metal, cujo sacerdócio gira no mesmo sentido no qual gira o funcionamento dos bancos, argento, dinheiro. Dá-me pena saber que há gente, em sua maioria humilde, que dá o seu dinheirinho, ou melhor, é coagida a dá-lo, sob ameaças de perecerem na danação interna.
Depois desse longo circunlóquio, explico-vos o motivo de tudo: estava eu parado no ponto de ônibus, numa sexta-feira à noite, esperando o ônibus para o metrô - ia à comemoração do aniversário natalício duma querida amiga - quando percebi que o restaurante do bairro, existente desde quando entendia-me por gente, não mais existia. «Ao pé-de-porco», o lugar onde almoçava o barbeiro**. A placa fora pintada de cinza sem indicação alguma, porém, as portas estavam abertas e havia a fosca luz amarela de lâmpada incandescente. Foi então que percebi, pelos murmúrio que de lá provinham que o velho restaurante tornara-se uma igreja-bingo. O pastor berrava:
- ... pelo sangue de Jesus! - a entonação daquela voz tinha um que de ridículo mesclado com pavoroso. Garanto que Jesus, se a ouvisse, morreria de vergonha por aquele partorzeco; e depois por si mesmo.
- Aleluia! - respondia a assistência, que pelo rimbombar das vozes, dava a perceber que eram pelo menos umas vinte, vinte-e-cinco pessoas.
Mais umas palavras incompreensíveis salmodiadas pelo pastor e no final, ele arrematava com primor, alçando a voz:
- ... e foi Deus quem fez!
- Aleluia! - berrava a grei maravilhada.
Eu e as quatro pessoas que estavam no ponto comigo, olhávamos a cada seqüência de berros. Havia dois que se conheciam e a cada berro paravam a conversa, olhando para a porta aberta, do outro lado da pequena avenida, típica de bairro. Todos no ponto, à mercê daquela gritaria histérica. Não via a hora que chegasse o colectivo. A certo ponto, a eloqüente gritaria continuava:
- ...e foi o filho de Deus!
- Aleluia! - secundava o rebanho preso pela encefalia espongiforme.
Uns instantes de silêncio.
- Ei, você aí do fundo! - gritou a voz esganiçada e estentórea do pastor - Não vai gritar aleluia?!
Fiquei lívido. As pessoas no ponto esboçaram reações símiles. A dupla que conversava cessou o palavrório. Os olhos nossos e atenções eram somente para o ex-restaurante.
- Grita aleluia, porra! - estourou o pastor.
O silêncio instaurou-se no ponto. Ninguém falava. Entreolhamo-nos assustados. Aïnda bem que, do ponto onde estávamos, nada podia ser visto. Somente ouvíamos. E mesmo assim, a reação sobre nós foi avassaladora. Ficamos assombrados.
Mais um par de minutos, chegou o ônibus, para o meu alívio. Mas, convenhamos: passado o susto, foi espirituoso, não foi?
Notas:
* não foi bem uma opção, mas isso é assunto para outro dia.
** aqui também pode haver prolongamento de assunto. O barbeiro do bairro parece-se muito com o Ned Flanders, d’«Os Simpsons». Na sua barbearia há o retrato do Lênin ao lado de uma viçosa samambaia. Além de cultivar um vasto e opulento bigode como o do camarada Stálin.
P. S.: os meus amigos e colegas protestantes, não se assustem; é apenas uma crônica que tende para o pitoresco - embora seja bem real. Não se ofendam. Vistas estas notas, talvez dê para espichar e fazer uma obra toda entrelaçada, como a do querido Honório de Balzac.

quinta-feira, janeiro 27

Música, maestro!

O bar já estava fechando. Havia aïnda uns dois casalzinhos, um homem de sobretudo e no canto oposto perto da saída, o agourento Marquês d’Espard, com a face apoiada sobre os braços acotovelados na mesa. A banda de jazz tocava os últimos acordes de uma obra assaz melancólica. Finda a obra, o nobre senhor berrou do seu canto:
- Mahler! Eu quero a número seis do Mahler! Bastardos!

sexta-feira, janeiro 21

As mãos e extratos da mediocridade

As mãos
O concerto de Brandemburgo n.º 1 é uma verdadeira delícia; é magnânimo, é envolvente, é extremamente prazeiroso ouvi-lo. Ouvindo-o, imagino Bach, sentado a uma escrivaninha sob a luz amarelada duma lanterna a óleo, numa noite chuvosa em Lípsia. A sua mão, ligeiramente obesa alternando-se entre o papel pautado e o tinteiro; ninguém em volta. O barulho da chuva, o ladrar dum cão ao longe e o ruminar cerebral que provinha de si sobre o papel. Que pensar, que das mesmas mãos humanas - não as de Bach, propriamente, mas as dos seres humanos normais -, mãos que tanto podem dedicar-se a escrever uma belíssima obra-prima musical, um poema que entrará para a história, quanto dedicar-se a trabalhos altamente aviltantes quanto assinar contratos de empréstimo ou gesticular ao telefone.
Assim é a minha mão: ela assina contratos de empréstimo, empréstimo para gente aviltante, cerca de uma centena de rubricas e assinaturas por dia; a minha mão serve para puxar o telefone e atendê-lo e gesticular enquanto fala. A minha mão serve para indicar onde está a garrafa témica, onde se escondem os copos do bebedouro; onde estão as guias de contabilização. Serve ainda para preencher as mesmas guias. Serve para apoiar a cabeça nos momentos de desespero, para segurar o queixo nos momentos de pretensa e fingida atenção. Serve para reger a orquestra de maritacas que se acumulam no parapeito da janela.
Servem para pôr o bilhete no bloqueio do metrô, cumprimentar os amigos e os inimigos; para dar acenos esnobes; para ficarem quietas nos bolsos ou ficar remexendo as moedas miúdas dentro deles; para dar sinal para o ônibus, para dar corda no relógio da sala; segurar o cortador de grama; folhear o jornal e ver as barbaridades de todo-santo-dia.
As vezes elas tremem e viram-se para mim desconsoladas. Queriam pular no pescoço daquela correntista inconveniente. «Vamos lá, seu excomungado», elas me segredam, «pega a placa de tarifas e bate-lhe até que sua cabeça parta-se...». Não! Mãos más. Fostes feitas para serem gentis, para afagar a cabeça das crianças, dos gatos, dos cães; para deslizar sobre as mesas delicadamente. Mas elas não desistem, são rudes violentas; embora pequenas. Querem vingar-se, não aceitam afrontas; agarram-se ao balaústre do metrô ferozmente: «Aqui ficamos nós!». Toda raiva concentrada em mim, tem escape pelas minhas mãos: papéis, lápis, latas de refrigerante redizem-se rapidamente a sucata inútil sob o seu jugo tirânico. Quando nada há a destruir, apertam-se uma a outra. Como eu próprio geralmente comporto-me: aperto-me em mim mesmo.
Um dia, estas minhas mãos revoltar-se-ão contra seu mestre e tutor, primeiro em paralisação geral; depois atentarão contra a sua vida, jogando-se furiosamente contra o pescoço ou armando-se de qualquer faca. As minhas mãos tomando o papel que caberia à sociedade, de extirpar os entes que não lhe são convenientes ou lhe são subversivos; as únicas coisas que não me era hostis, um dia virão sim, contra mim, em conluio com o resto.
Extratos da mediocridade
Extratos dos ridículos e extensos diários de um ser obtuso. Manteve-se a grafia original e os trechos referem-se ao ano da graça de 2004.

5 de maio - Durmo revolucionário e acordo desertor.
8 de maio - Que sou eu, senão um balde de excremento?
18 de maio - A semana começou com Tylenol (para a cabeça) e água tônica (para o estômago).
1.º de junho - O Elefante cartaginês - foi exatamente o que representei no primeiro dia de banco.
11 de junho - Gostaria muito de sumir, simplesmente como se apaga uma luminária num quarto escuro.
16 de junho - Dinamite! Eu quero dinamite! Talvez eu desacate um desses policiais do Exército que andam por aí por causa da Conferência da ONU só para ganhar uma rajada de metralhadora.
21 de junho - Hoje foi um dia mais «controlado». De manhã, no metrô, comprei uma cópia do Código Civil; e lá pelo artigo mil-duzentos-oitenta e tralalá, há no texto uma questão sobre frutas que caem no terreno vizinho.
23 de junho - Nossos próprios ossos se fora do lugar e quebrados, podem nos traspassar e ferir. Que dirá dos nossos pensamentos e outras sensações trascinantes?
4 de julho - Tem já dez anos o plano econômico que deu continuidade à desordem social.
20 de agosto - [...] Ontem pela manhã, assim que se abriram as portas do banco, entrou uma senhora para refazer um empréstimo. Dona Maria Cecília. Visto que mais nada cabia em sua renda, Hélia afirmou-lhe que não era possível refazer. Então a mulher começou humildemente a tecer seus problemas: o marido desempregado, a mãe de noventa-e-quatro anos que sofrera um derrame; e desatou a chorar sofregamente.
25 de agosto - [...] Sonho muito pouco; às vezes que me ocorrem no ano são contáveis pelos dedos de u’a mão e são relativamente fragmentários.
4 de setembro - [...] Aprendi que, pela lei da mínima probabilidade, devemos sim jogar na loteria (comentário sobre certo curso de vendas que tive de fazer).
12 de setembro - E no silêncio da noite, sob as cortinas do breu e da temperatura baixa ao improviso, alguém martela u’as madeiras, o rumor característico da madeira em choque é inconfundível.
15 de setembro - [...] A única coisa produzida pelo homem que é igualitária e realmente democrática - nada de eleições, escrutínios ou qualquer outro tipo de orgia democrática - é a bomba atômica. [...] igualitária tal qual queriam os comunistas/socialistas.
19 de setembro - Não preciso ver filmes americanos para saber que são ruins.
28 de setembro - [...] citei caracterizando a expressão «vontade férrea» pelo impulso de levantar e ir trabalhar, mesmo achando tudo uma grande merda. A expressão certa é «covardia férrea», talvez nem férrea, mas de platina.
8 de outubro - A música do gramofone continua a dilatar-se pelas ruas e vai fazendo parar quem a escuta. O operário largou a britadeira e olhou para o céu tépido de primavera. De onde vem a música? Como uma vaga, ela vem ocupando os espaços. De improviso, as pessoas param e tem na cara um ar nostálgico de bons tempos. A melodia continua a sua progressão, extravazou a cidade e vai rapidamente dilatando-se pelas veredas, campos cultivados, pastos, sertões e florestas. Tudo envolve-se numa calma cálica. As pessoas não correm mais nas estações de metrô e quando se esbarram, desculpam-se com cordiais reverências. O vento trouxe a música até o campo de batalha; o barulho da última bomba cessou de ecoar, os soldados saltaram das trincheirase abraçaram-se. A música era o sinal que o fim do mundo seria dali alguns instantes. E assim foi.
10 de outubro - [...] Alguns choravam silenciosamente. Cantaram pela última vez o melancólico hino nacional que lembrava quase um lamento; por fim, sentaram-se do lado das covas e foi uma questão de horas para que estivessem todos mortos. Os chacais e abutres não apareceram, e quase no fim do inverno, uma brigada do país vizinho veio enterrá-los.
17 de outubro - [...] Roma ardeu. Adreu tudo; templos, casas, ínsulas, celeiros. Mas quem foi o estúpido que jogou essa bituca aqui?!
26 de outubro - Porque? Casa, comida, roupa lavada, pátria, deus, rei, Antônio Cândido, dodecafonismo, chefe, metrô, ônibus, elevador, gente em profusão? Porque?
16 de novembro - [...] Choveu boa parte do dia, na verdade, durante todo o dia. As ruas pareciam sulcos de um imenso disco; e se os carros fossem providos de agulhas, escutar-se-ia pôlos seus pára-choques uma melancólica romança.
3 de dezembro - Neste interlúdio, o clima mudou várias vezes, houve dias de calor siciliano, calor insuportável que penetra até à alma, um calor siciliano que transforma as camisas fétidas como as de um estivador e meias mais putrefeitas que carniça, de fazer vomitar um urubu de louça.

sábado, janeiro 15

A Argentina e os trólebus

Os trólebus
Não me agrada nem um pouco José Serra, nosso novo alcaide. Tanto não me agrada, que não votei nele no último escrutínio, escolhendo pela alcaidessa que tentava a reeleição; mas ela não conseguiu os votos e perdeu o posto. Continua a não me agradar Serra, mas devo admitir que comigo ele tem já um ponto a favor, justamente num dos pontos qu’eu mais criticava na admistração anterior: a questão dos trólebus.
A administração Marta Suplicy optou por uma solução que ia pela contra-mão das tendências atuais: tirar os trólebus e substitui-los por ônibus movidos a diesel; o que julgo uma insanidade, pois deveria ser simplesmente o oposto. Houve gente - conhecidos meus inclusive - que vibraram com a condenação aos trólebus, tachando-os de lerdos, mas em nome de uma pretensa maior rapidez e autonomia dos veículos a diesel, sacrifica-se o ar, visto que os ônibus a diesel são extremamente poluidores; enquanto os elétricos, simplesmente não poluem, além de serem mais silenciosos e confortáveis. É como comportar-se à Estados-Unidos, que rejeitaram o protocolo de Kyoto.
Fico contente que a nova Administração Municipal repare erros da anterior; mesmo não sendo eleitor do partido pelo qual ela foi eleita, temos de crer pelo seu sucesso, afinal, caso algo saia dos eixos, os maiores prejudicados seremos nós, munícipes, habitantes e passantes. Tem em mente de restaurar como era a rede de trólebus (que havia sido reduzida consideravelmente) e talvez até ampliá-la. Realmente foge à minha cognição o motivo pelo qual a Administração anterior escolheu de diminuir a rede de trólebus e também a qualidade do ar da cidade em nome de pendengas judiciárias com a AES-Eletropaulo; em vez de escolher por resolvê-las, optou-se pelo caminho mais fácil, exclui-los em vez de buscar uma saída alternativa com a Eletropaulo.
Então, prefeito, vamos lá; os paulistanos que pugnam pela causa do transporte público limpo estão esperando a sua resolução favorável aos trólebus.
En unión, libertad y originalidad
Sou obrigado a admitir: a Argentina é muito mais país do que somos nós... principalmente em aspectos históricos constitutivos. A independência da Confederação das Províncias Unidas do Prata, deu-se realmente por uma certa sublevação popular; a nossa, pelos caprichos de um príncipe português, que inclusive tentou desfazer a enrolada quase dez anos depois. A bandeira argentina foi desenhada por um militar, advogado e político em 1812, o egrégio Manuel Belgrano (cuja face está estampada na nota de dez pesos), a nossa é resultado de um pastiche horrendo cuja explicação oficial é pior ainda. A explicação oficial detém-se em: o verde das nossas matas (ainda bem que não criaram por medida provisória a diminuição do verde de acordo com o grau de devastação da floresta), o amarelo do nosso ouro (qual? aquele que os portugueses rechearam as igrejas e mandaram para a Inglaterra?). Pois na verdade, a configuração da nossa Bandeira Nacional, diagramada por J.-B. Debret (um francês!) remete-se ao verde dos Bragança (família real portuguesa do nosso Nero) e ao amarelo dos Habsburgo (à qual pertencia nossa primeira Imperatriz). Cá cos meus botões, acho a Argentina muito mais original.

domingo, janeiro 9

Hungria, minha terra

As ruas de Újfehértó são angustas, recobertas de parelepípedos e limo. Sob o inverno, os paralelepípedos ficam assustadoramente símiles a cubos de gelo; cubos não propriamente, mas sólidos retangulares. Não conheço praticamente ninguém na cidade, afinal, exilei-me aqui somente há alguns dias. Evito sair do pequeno apartamento do primeiro andar do prédio do açougue, na praça Pécs; o tempo não é dos melhores e hoje de manhã nevou bastante; sentado na escrivaninha, só tenho noção que o tempo passa, pelos sinos da Basílica, do outro lado da praça.
Ontem tentei dar uma volta pelos arredores. Em verdade consegui, desci pela escada e acenei para o açogueiro - que é também o meu senhorio - que alegremente cofiou os bigodes, disse algo que identifiquei como um «bom dia» e perguntou algo. Dei de ombros e um sorriso amarelo. Ele também sorriu, mas muito mais vigorosamente, a ponto de oscilar a cabeça. Ganhei a praça. Ao fundo, no horizonte, vê-se umas montanhas e segundo Karélnyi, meu vizinho de apartamento e professor de húngaro, são os solapos dos Cárpatos, os Montes Apuseni, no vértice entre os Cárpatos prorpiamente ditos e os Cárpatos meridionais. Só consigo por enquanto falar com Karélnyi, pois é o único que entende o meu húngaro estropiado; e fala italiano.
- Guarda, Karélnyi! Quei monti! Come si chiamano?
- Sono i Carpati, Venardi. Sono già in territorio rumeno.
E realmente, estamos próximos da fronteira com a Romênia; mais ao norte, a Ucrânia.
Continuando com o meu passeio pela praça, sem Karélnyi como das outras vezes, parei diante da banca de jornal. O jornaleiro deu um sorriso afável; não disse nada, pois já me vira conversando somente em italiano. Talvez toda cidadezinha soubesse que havia um «italiano» lá. Passei os olhos pelos jornais. Conseguia pronunciar os nomes dos périodicos, conhecia já as letras, que afinal são o alfabeto latino, sabia a diferença de pronúncia de sz, surdo e zs, sonoro; mas não conseguia distinguir os que significavam os títulos. Igualmente com os livros; conhecia até alguns autores: Kisfaludy, Erdélyi, Kafka e Lukács; mas os títulos novamente. Pensava comigo quantos anos teria de ficar ali até conseguir aprender o mínimo de húngaro. Por enquanto, eu não consigo pedir nem esmola.
A diferença entre sz e zs, Karélnyi explicou-ma magistralmente: «Venardi! É como em polonês!» Realmente muito boa, se eu conhecesse polonês. Ádám Karélnyi. Era professor de língua húngara na escola primária da cidade. Tinha uma paciência infinita, mesmo comigo, que mal conseguia diferenciar o som do y e do i; tinha um cultura vastíssima e disse que logo traria um amigo seu, poeta, de Budapeste que queria apresentar-me de qualquer jeito. Viria de trem.
- Ou então podemos ir nós a Budapeste. Que achas, Venardi.
Budapeste eu só conhecia o trajeto do aeroporto até a estação de trem, inclusive Karélnyi fora buscar-me no aeroporto, pois eu não teria a mínima condição de deslocar-me sozinho. A língua era uma muralha desesperadora. E aïnda é. Da praça, olhava marejado os Cárpatos. «Lá é a Romênia... São latinos também; falam uma língua latina... seria muito mais fácil entendê-los...».
Por ora, tenho de contentar-me em resmungar algumas palavras com o açougueiro, assistir as lições que Karélnyi me leciona no meu apartamento e ir como exotismo às aulas da escola. Karélnyi pediu para que eu fosse consigo à escola para mostrar-me aos alunos. Quando entrei os alunos não se assombram. Era uma segunda série primária. Um dos alunos levantou-se e timidamente desafiou Karélnyi:
- Professor, este senhor não é brasileiro.
- E porque não, Petölfi?
- Ele não é negro...
- E quem te disse que só há negros no Brasil?
- É o que mostra a televisão, no desfile de Carnaval do Rio de Janeiro. Eu acho que ele é tão húngaro quanto nós todos. - continuou o aprendiz de valentão Petölfi.
- Sérgio inclusive não é do Rio de Janeiro - cortou Karélnyi - É de São Paulo; uma cidade mais ao sul, com dez milhões de habitantes...
- Na melhor das hipóteses ele é polonês...
- Não, Petölfi, no Brasil, há brancos também, principalmente em São Paulo e nas pronvíncias do sul.
Eu tinha entendido «províncias». Emendei em italiano:
- Províncias não, Karélnyi; estados.
- Ah! - esclamou Petölfi - ele respondeu em espanhol, mas entendeu húngaro! Ele é húngaro!
A sala começou a agitar-se. Eu entendi meia dúzia de palavras mas entedi o que se passava. Karélnyi começou a ficar vermelho.
- Não! Primeiro não é espanhol! - rugiu Karélnyi - é italiano. E ele fala italiano, pois eu não entendo português. No Brasil não se fala espanhol, se fala português.
Karélnyi quase roxo, voltou-se para mim e disse em italiano:
-Pelo amor de Deus! Diga algo em português para esses monstrinhos antes que eu enlouqueça.
Nunca vira até então Karélnyi naquele estado de nervos. Anunciou para a sala em húngaro que eu ia dizer algumas palavras em português. Vi quase setenta olhinhos sedentos, que colavam-se-me à roupa quase. Aproximei-me da cartei da Petölfi, a qual dividia com uma menininha de cabelos ruivos. Afaguei a cabeça de Petölfi e disse-lhe em um húngaro quase sem sotaque:
- Jó reggelt, Petölfi! Hogy vagy? (bom dia, Petölfi! Como vai?)
Petölfi escancarou a boa de estupor e gaguejou:
- Megvagyok... (mais o menos...)
Dirigi-me ao fundo da sala e sentei-me numa das carteiras que estavam vazias. Diante do tablado verde da lousa, Karélnyi não estava mais vermelho, mas sim atônito e branco feito cera.
Foi assim que ganhei a cidadania húngara, pelo menos frente aos alunos de Karélnyi.

sexta-feira, janeiro 7

L’Attesa - Atto IV

E adesso? Non ti vedrò mai più? Credo che ti sei nascosta, ti sei svegliata; la meraviglia che ti rendeva cieca è passata. Adesso vedi, vedi e quindi fuggi - ah! quei perduti dì! Gioia della mia eterna sconfitta. Certamente ti sei arrabbiata colle mie lettere, rozze che non dicevan nulla; parecchie parole per dire niente. La paura di offendere mi ha tolto le frasi; la paura di aver fretta, la paura della paura.
Tutt’intorno s’era dipinto di un nuovo colore. Era dipinto. Centinaia di fiori crescevano, le nuove speranze; il passato era già lontano, come um vecchio canto, come la guerra. L’attesa; somigliava il nuovo amore.
La sveglia è suonata, il passato ha pigliato il suo posto ed è diventato il mio presente, lo stesso passato, il sole s’è ne andato; e comunque sia, l’anima mia è nel tuo cielo, come un filo appeso al vento, un sogno che non c’è. Ecco perché muoiono i fiori; l’attesa.
La sveglia è suonata; ti sei svegliata. Non posso impedirti di veder la realtà; non posso nascondermi - dunque tu mi vedi com’io sono. E so che non ti sei piaciuta. Te ne sei andata; l’ultimo avanzo d’una stirpe infelice e sul nemico acciaro mi abbandonerò.
Per me la vita è orrendo peso, l’Universo intero è un deserto. Ingrata donna, mentr’io mi struggo in disperato pianto, tu ridi su accanto! Ahimè. Torno al giorno comune e ignoto, a quella esistenza ove i giorni son l’eterna riproduzione uno dell’altro. Porquoi me réveiller?
Eh, la Solitudine Infinita, la Solitudine Trimegista, la dea degli stupidi che vivon di speme, della speme altrui.
E come dare un senso ai sensi?
* * *
Rispetta almen le cenere di chi muore per te... senza conoscerti.
(com licença poética aos diversos trechos de árias e músicas citados)