Heterodoxias
Fui criado num catolicismo frouxo, bem largo; fui batizado, mas optei por não fazer primeira comunhão*. Freqüentei as missas na Igreja de Santa Isabel durante um bom ano e meio, mas não comungava; depois dum período de agnosticismo - dúvidas e recaídas - estabilizei-me num ateísmo que considero até saudável: Deus não me incomoda e eu não o incomodo e assim vamos vivendo. Comporto-me socialmente bem, já que a maioria das pessoas vêem os ateus como uma ameaça à sociedade e uma ofensa à sua fé; se me perguntam qual a minha religião, dou uns volteios; não tenho religião; acredito mas não sigo. Tanto que há poucos dias, uma cliente do banco, à qual eu efetuava um empréstimo, fez-me a fatal pergunta. E ajuntou: «és católico»; «sou», respondi-lhe para não perder o fio da meada. A resposta valeu-me uma medalhinha de Nossa Senhora das Graças banhada a ouro.
Voltando, vejo um certo papel benéfico na Igreja, como patrona e mecenas das artes, principalmente no que tange à Arquitectura, as igrejas são tesouros arquitectônicos, olhai a Sé, a Consolação, a do Carmo. Esse é o papel da religião, uma fé cultural. Também não me incomoda a religião nos seus aspectos místicos - leia-se bem: desde que não me incomodem como fazem (perdão da indelicadeza da citação) os testemunhas de Jeová. Sou vacinado contra conversionites e afectações correlatas.
Nos tempos mais recentes, o catolicismo romano, que era maioria absoluta há vinte anos, vem perdendo terreno - ou rebanho? - aos protestantes. Embora sejam os católicos aïnda maioria, é uma maioria esquálida, cerca duns 80-85%.
Protestante, para um país-quizumba como é este nosso, é um rótulo ingrato: agremia tudo aquilo que é cristão, mas não é católico. Conseqüentemente, um arco que vai da Igreja Luterana à Universal do Reino de Deus, pelo censo são considerados um só, como parte do mesmo espectro. É um problema sério, pois do mesmo jeito que há instituições sérias e confiáveis, como a própria Igreja Luterana, a Anglicana, os Ortodoxos, há esse ramo do pentecostalismo-estripulante (ou quem sabe o pentecostalismo-pulandinho) desses pastores histéricos e ávidos do vil metal, cujo sacerdócio gira no mesmo sentido no qual gira o funcionamento dos bancos, argento, dinheiro. Dá-me pena saber que há gente, em sua maioria humilde, que dá o seu dinheirinho, ou melhor, é coagida a dá-lo, sob ameaças de perecerem na danação interna.
Depois desse longo circunlóquio, explico-vos o motivo de tudo: estava eu parado no ponto de ônibus, numa sexta-feira à noite, esperando o ônibus para o metrô - ia à comemoração do aniversário natalício duma querida amiga - quando percebi que o restaurante do bairro, existente desde quando entendia-me por gente, não mais existia. «Ao pé-de-porco», o lugar onde almoçava o barbeiro**. A placa fora pintada de cinza sem indicação alguma, porém, as portas estavam abertas e havia a fosca luz amarela de lâmpada incandescente. Foi então que percebi, pelos murmúrio que de lá provinham que o velho restaurante tornara-se uma igreja-bingo. O pastor berrava:
- ... pelo sangue de Jesus! - a entonação daquela voz tinha um que de ridículo mesclado com pavoroso. Garanto que Jesus, se a ouvisse, morreria de vergonha por aquele partorzeco; e depois por si mesmo.
- Aleluia! - respondia a assistência, que pelo rimbombar das vozes, dava a perceber que eram pelo menos umas vinte, vinte-e-cinco pessoas.
Mais umas palavras incompreensíveis salmodiadas pelo pastor e no final, ele arrematava com primor, alçando a voz:
- ... e foi Deus quem fez!
- Aleluia! - berrava a grei maravilhada.
Eu e as quatro pessoas que estavam no ponto comigo, olhávamos a cada seqüência de berros. Havia dois que se conheciam e a cada berro paravam a conversa, olhando para a porta aberta, do outro lado da pequena avenida, típica de bairro. Todos no ponto, à mercê daquela gritaria histérica. Não via a hora que chegasse o colectivo. A certo ponto, a eloqüente gritaria continuava:
- ...e foi o filho de Deus!
- Aleluia! - secundava o rebanho preso pela encefalia espongiforme.
Uns instantes de silêncio.
- Ei, você aí do fundo! - gritou a voz esganiçada e estentórea do pastor - Não vai gritar aleluia?!
Fiquei lívido. As pessoas no ponto esboçaram reações símiles. A dupla que conversava cessou o palavrório. Os olhos nossos e atenções eram somente para o ex-restaurante.
- Grita aleluia, porra! - estourou o pastor.
O silêncio instaurou-se no ponto. Ninguém falava. Entreolhamo-nos assustados. Aïnda bem que, do ponto onde estávamos, nada podia ser visto. Somente ouvíamos. E mesmo assim, a reação sobre nós foi avassaladora. Ficamos assombrados.
Mais um par de minutos, chegou o ônibus, para o meu alívio. Mas, convenhamos: passado o susto, foi espirituoso, não foi?
Voltando, vejo um certo papel benéfico na Igreja, como patrona e mecenas das artes, principalmente no que tange à Arquitectura, as igrejas são tesouros arquitectônicos, olhai a Sé, a Consolação, a do Carmo. Esse é o papel da religião, uma fé cultural. Também não me incomoda a religião nos seus aspectos místicos - leia-se bem: desde que não me incomodem como fazem (perdão da indelicadeza da citação) os testemunhas de Jeová. Sou vacinado contra conversionites e afectações correlatas.
Nos tempos mais recentes, o catolicismo romano, que era maioria absoluta há vinte anos, vem perdendo terreno - ou rebanho? - aos protestantes. Embora sejam os católicos aïnda maioria, é uma maioria esquálida, cerca duns 80-85%.
Protestante, para um país-quizumba como é este nosso, é um rótulo ingrato: agremia tudo aquilo que é cristão, mas não é católico. Conseqüentemente, um arco que vai da Igreja Luterana à Universal do Reino de Deus, pelo censo são considerados um só, como parte do mesmo espectro. É um problema sério, pois do mesmo jeito que há instituições sérias e confiáveis, como a própria Igreja Luterana, a Anglicana, os Ortodoxos, há esse ramo do pentecostalismo-estripulante (ou quem sabe o pentecostalismo-pulandinho) desses pastores histéricos e ávidos do vil metal, cujo sacerdócio gira no mesmo sentido no qual gira o funcionamento dos bancos, argento, dinheiro. Dá-me pena saber que há gente, em sua maioria humilde, que dá o seu dinheirinho, ou melhor, é coagida a dá-lo, sob ameaças de perecerem na danação interna.
Depois desse longo circunlóquio, explico-vos o motivo de tudo: estava eu parado no ponto de ônibus, numa sexta-feira à noite, esperando o ônibus para o metrô - ia à comemoração do aniversário natalício duma querida amiga - quando percebi que o restaurante do bairro, existente desde quando entendia-me por gente, não mais existia. «Ao pé-de-porco», o lugar onde almoçava o barbeiro**. A placa fora pintada de cinza sem indicação alguma, porém, as portas estavam abertas e havia a fosca luz amarela de lâmpada incandescente. Foi então que percebi, pelos murmúrio que de lá provinham que o velho restaurante tornara-se uma igreja-bingo. O pastor berrava:
- ... pelo sangue de Jesus! - a entonação daquela voz tinha um que de ridículo mesclado com pavoroso. Garanto que Jesus, se a ouvisse, morreria de vergonha por aquele partorzeco; e depois por si mesmo.
- Aleluia! - respondia a assistência, que pelo rimbombar das vozes, dava a perceber que eram pelo menos umas vinte, vinte-e-cinco pessoas.
Mais umas palavras incompreensíveis salmodiadas pelo pastor e no final, ele arrematava com primor, alçando a voz:
- ... e foi Deus quem fez!
- Aleluia! - berrava a grei maravilhada.
Eu e as quatro pessoas que estavam no ponto comigo, olhávamos a cada seqüência de berros. Havia dois que se conheciam e a cada berro paravam a conversa, olhando para a porta aberta, do outro lado da pequena avenida, típica de bairro. Todos no ponto, à mercê daquela gritaria histérica. Não via a hora que chegasse o colectivo. A certo ponto, a eloqüente gritaria continuava:
- ...e foi o filho de Deus!
- Aleluia! - secundava o rebanho preso pela encefalia espongiforme.
Uns instantes de silêncio.
- Ei, você aí do fundo! - gritou a voz esganiçada e estentórea do pastor - Não vai gritar aleluia?!
Fiquei lívido. As pessoas no ponto esboçaram reações símiles. A dupla que conversava cessou o palavrório. Os olhos nossos e atenções eram somente para o ex-restaurante.
- Grita aleluia, porra! - estourou o pastor.
O silêncio instaurou-se no ponto. Ninguém falava. Entreolhamo-nos assustados. Aïnda bem que, do ponto onde estávamos, nada podia ser visto. Somente ouvíamos. E mesmo assim, a reação sobre nós foi avassaladora. Ficamos assombrados.
Mais um par de minutos, chegou o ônibus, para o meu alívio. Mas, convenhamos: passado o susto, foi espirituoso, não foi?
Notas:
* não foi bem uma opção, mas isso é assunto para outro dia.
** aqui também pode haver prolongamento de assunto. O barbeiro do bairro parece-se muito com o Ned Flanders, d’«Os Simpsons». Na sua barbearia há o retrato do Lênin ao lado de uma viçosa samambaia. Além de cultivar um vasto e opulento bigode como o do camarada Stálin.
** aqui também pode haver prolongamento de assunto. O barbeiro do bairro parece-se muito com o Ned Flanders, d’«Os Simpsons». Na sua barbearia há o retrato do Lênin ao lado de uma viçosa samambaia. Além de cultivar um vasto e opulento bigode como o do camarada Stálin.
P. S.: os meus amigos e colegas protestantes, não se assustem; é apenas uma crônica que tende para o pitoresco - embora seja bem real. Não se ofendam. Vistas estas notas, talvez dê para espichar e fazer uma obra toda entrelaçada, como a do querido Honório de Balzac.