quinta-feira, março 31

Eça revisitado

Nosso querido Eça de Queiroz está passado por graves provações; depois de um tropeção no Rossio, acabou por cair dentro duma passagem espaço-temporal aberta por uma determinada conjunção planetária, justo naquele momento e naquele lugar! Da Lisboa do último quartel do século XIX, acabou por vir parar na São Paulo do século XXI; mesmo sem os seus manuscritos, deu um jeito – ainda não se sabe como – de reescrevê-los para apresentá-los a um editor; acabou sendo recusado em diversas casas editoriais, acusado de louco e plagiador. Foi parar numa Editora num bairro periférico, deixou o manuscrito para análise e disse que voltava depois de alguns dias. A editora que funcionava junto da casa do editor; este recebeu Eça na sala de estar-escritório.
— Vamos, senta aí. Quer um café?
— Não, obrigado. E então, o que o senhor achou do meu manuscrito?
— Bem, veja bem, eu vou estar topicalizando o problema para que o Senhor possa estar entendendo; para depois serem efetualizadas as correções, certo.
— …hum… tudo bem. – respondeu Eça perplexo.
— Primeiro, umas considerações gerais; fiz uma pesquisa e descobri que há um autor de romances melados com o mesmo nome do senhor; é português igual ao senhor…
— Não me diga! – espantou-se Eça.
— Pois é, o senhor conhece? Talvez seja parente do senhor…
— Não, nunca o vi alhures.
— Hã… oquei; então, pra que a gente possa estar publicado o livro, o senhor vai adotar um apelido, um nome diferente que não seja o do senhor, já que tem outro Eça…
— O senhor diz de eu adoptar um pseudônimo?
— Isso, algo paradigmatizado nessa linha… que tal Washington Bloodfinger, ou Wesley Swappes?
— Hum… - respondeu Eça aparentemente impressionado.
— Bem, isso a gente pode ver depois; vamos aos outros problemas: é muito grande.
Alguns instantes de silêncio.
— O que é muito grande? – perguntou Eça.
— Como o quê? – estralou o editor – o livro! A gente, afinal, está falando do que? Do livro!
— Perdão; eu não entendi por que não havia sujeito.
— Como não há sujeito? E o Padre da história?
— …
— Bem, é muito grande. A gente vai ter que reduzir, porque a nossa Editora só trabalha com pockets, por isso que a gente é a Pocket Rocket Editora’s!
— Certíssimo… eu somente não compreendo esse Genitive case na palavra «editora».
— Está na moda. Outra coisa que está obstaculizando o trabalho é alguns pontos da história; por exemplo; essa coisa de Portugal no século XIX, isso não vende, foi o tempo. Já era. E a gente quer vender, oquei? – e coçou-se ruidosamente por cima da camisa estampada floridíssima.
— …
— Então, a gente põe a história no Rio, numa favela, um padre numa igreja de favela. A Amélia não pode tocar piano; diversão de mina de favela é ir ao baile funk
— Fânque? Eu não saberia o que é.
— Aquela música; teve muito aqui em São Paulo uma época, mas o forte é lá no Rio. O senhor parece que não vê televisão! Então, a Amélia, no máximo vai cantar no karaoquê, isso, eles terão um karaoquê. Karaoquê o senhor sabe o que é, não? – perguntou o Editor ironicamente.
— Hum… parece-me algo levemente chinês…
O editor deixou o cigarro cair da boca, para dentro do copo de pinga.
— Bem, tudo bem, depois eu te explico pro senhor. Mas voltando pro livro, a Amélia está muito velha pra situação em que o senhor está pondo ela.
— Mas como? É uma rapariga à flor da idade.
— Só que no Brasil, seu Eça, as minas vão ser raparigas muito mais cedo. Seria bom se ela tivesse uns… 8 para 9 anos…
— Mas como?! Uma criança!
— Por isso mesmo! Vê só, é um padre morrendo de tesão por uma criança; um padre pedófilo. Se a gente fizer essas mudanças, vai vender uma puta montanha de livro! Não vê, seu Eça. A gente vai estar ganhando um puta monte de bufunfa! E é isso que a gente quer, ou não?
— É… sim… talvez um pouco, mas…
Levantam-se os dois e começam a caminhar para a porta. Eça na frente seguido pelo editor.
— Se o senhor adequalizar essa história como eu te disse, venderemos muito, mas muito mesmo… corrige tudo e me traz a semana que vem pra mim ver como é que ficou. Ah, mais uma coisa, trata de mudar essa palavrada que ninguém entende; tipo chantre e outras iguais; e o título, ao invés de O Crime do Padre Amaro, é melhor que seja Amaro e Amélia na Favela… muito mais sonoro, fora que eu estou querendo estar lançando uma coleçãozinha tipo Júlia, Sabrina; que vai se chamar Pâmela, e o primeirão será o seu. – E espalmou a mão sobre a espalda de Eça, fazendo o monóculo saltar-lhe do rosto.

quarta-feira, março 30

Indigestões do merídio

Um texto escrito à hora do almoço, para aqueles que como tantos outros, preferem fazer outra coisa ao invés de enfurnar-se em qualquer restaurante decrépito junto com outros bois.
O pomo da discórdia António era um senhor de meia-idade – aquela meia idade indefinida entre os 30 e o 60 anos -, funcionário público. Sua vida era pacata; do escritório para casa – à hora do ocaso, veja-se bem – e de casa para o escritório – pela manhã. Dava-se bem com os colegas de trabalho, conversava do mais e do menos com o jornaleiro, com o açougueiro, e até com o técnico eletrônico. Pegava o trem suburbano para ir ao trabalho. Se alguém se sentava junto de si e puxasse conversa, o senhor António retribuía amigavelmente. Enfim, era uma pessoa sociável, e mesmo sendo solteiro, em paz consigo mesmo. Porém, um dia veio a manifestar-se a inquietude, talvez lançada pela providência divina. Um dia como qualquer outro, fazia calor logo cedo. No saguão interno da estação de baldeação da Variante 1 para o tronco D, havia sido autorizada a colocação de barracas de gêneros comestíveis, principalmente os campestres, visto que a região ali, era semi-rural. Barracas estouravam de frutas luzidias e aromáticas; os olores ribombavam pelos corredores de acesso e no saguão, era uma verdadeira orgia olfativa, os aromas se imiscuíam promiscuamente. Como tantos outros passageiros, o senhor António também fora atraído para o recinto e seus olhos maravilhavam-se diante de tanta generosidade da Mãe-Natura. «Venturado seja, ó Deus, um país como este nosso, que pode produzir tão belas frutas», pensava consigo. De improviso, bateu os olhos numa banca de maçãs; mas não quaisquer maçãs; maçãs bojudas, de vermelho-vivo, imensas, quase tal-qual uma toranja; por detrás, uma camponesa robusta, alva com o cabelo loiro posto às tranças enroladas no alto da cabeça, fazendo-lhe uma quase uma coroa. O senhor António, atraído pelas maçãs, estacionara junto ao monte. Um dinar cada uma. Ora, com um dinar, se pode comprar meia dúzia das pequenas; mas aquelas maçãs não eram mação quaisquer, eram maçãs dignas da Exposição Nacional Agrícola. Estendeu à camponesa uma nota de dois dinares. «Duas, por favor.». A camponesa pôs as maravilhas dentro duma sacolinha indigna, em comparação com a majestade das frutas. «Obrigado».Com u’a maçã daquelas, o almoço estava garantido. E o senhor António foi-se a trabalhar. À hora do almoço, depois que os colegas saíram para comer, ele puxou a sacolinha sem-vergonha da gaveta; tirou um dos pomos, e foi pô-lo na boca; porém a mão estacou-se-lhe. Simplesmente, ele não poderia comer aquela maçã, tão perfeita, tão majestosa, imperial, era essa a palavra que ele procurava no momento e não encontrava. Repôs a fruta na mesa. Olhou-a continuamente por vários minutos, até que voltaram os colegas. «António! Que diabo! Onde você arrumou u’a maçã desse tamanho.» António sentiu-se incomodado; «querem roubar-ma! Em lugar nenhum!». Os colegas estranharam a repentina agressividade em pessoa geralmente tão pacata. À tarde, para o senhor António, passou-se arrastando; não conseguia trabalhar. O encarregado, que soube do incidente do pós-almoço, chamou António à sua sala e disse-lhe que parecia abatido, e todas aquelas outras coisas, e o dispensou pela tarde. António tomou o rumo da estação de trem, pálido e pensativo, considerava-se indigno de comer aquela maçã e a via entronada. Aquela maçã era a imperatriz da Áustria, ele jamais poderia, com os seus dentes plebeus sequer mordiscá-la. «Maria Cristina!», gritou, chacoalhando a sacola, frente a transeuntes indiferentes. Mas, por outro lado, elas são orgânicas, estão, num, por enquanto lerdo, processo de putrificação, desde que saiu da macieira; apodreceriam sem mais. Como poderia ele, sobreviver àquelas frutas divinas, perfeitas? Nesse exato momento, percebeu que havia desviado o caminho e estava bem no meio da ponte sobre o rio. Jogou-se.

terça-feira, março 29

Primeira praga burocrático-administrativa

(nota introdutória: serão numeradas e protocoladas de acordo com a ordem dos sucessos; o formulário deve ser em três vias, devidamente assinada e carimbada pelo Decano Infernal da Burocracia Institucionalizada)
Avisaram-me; não dei ouvidos: «Cuidado com os grampos, no verso dos protocolados; eles [funcionários malévolos de outros sectores] costumam grampear com as pontas dos grampos voltadas para o lado de fora das capas. Fique atento e faça o inverso.». Não dei o mérito necessário so precioso conselho emanado por experimentado funcionário e factótum - ao quel tento, com dificuldades, substituir.
Hoje, às 11:43, quando organizava eu uma pilha babélica de protocolados, pondo os mais recente por baixo - vede, sou um burocrata honestíssimo e respeito a ordem númerica de chegada, visto que vem assinalada nas belas capinhas -, quando, ao passar a mão por baixo, para soerguer a pinha, o grampo perfurou a epiderme do meu dedo mínimo da mão esquerda. Além de dolorido e sanguinolento, o ferimento obrigou-me a usar um ridículo curativo (band-aid) e a digitar e tomar café com o mínimo levantado.
Que o Burocrata do Universo tenha piedade de nós,
Amém.

segunda-feira, março 28

Fidarsi; vabbè, ma di...? (Confiar; é, mas em quem?)

No começo, priscas eras do início da década de 1980, havia a religião. Minha egrégia genitor me levava à igreja de São Pedro para acender lamparinas – ainda existem? -, eu, piedosamente, as levava até uma capelinha secundária, quando sempre no meio do caminho, interceptava-me o padre João, alemão de nascimento. «Oh, que bonitinho! Vai acender uma velinha e vai rezar, não é?». Eu olhava para a minha mãe e ela sorria de volta. Pessoalmente, o padre me assustava um pouco, era corpulento e vivia vermelho, mesmo no Inverno. Passado o obstáculo, depunha a lamparina e rezava o meu Padre-Nosso estropiadíssimo, afinal, como reza uma criança de três anos e meio?
Depois veio a escola. Podíamos mudar o mundo, se estudássemos; então, em 1992, veio a reforma do ensino e todo mundo passava automaticamente – somente os muito estúpidos ou negligentes ficavam para trás – e outro sonho que se desmanchou.
Colégio técnico idem. Entra-se pensando uma coisa; saí um Técnico Industrial em Edificações de araque – mas, atentai bem, com registro no Crea, um belo atestado oficial de incompetência. Do que vi no colégio, me lembro de muito pouca; afinal, nunca consegui trabalhar com Construção Civil; nas entrevistas, sempre fui rechaçado pela timidez característica da minha pessoa. Nesse ponto, perdi também a confiança no ser humano.
Trabalhei numa empresa de telecomunicações; dava meu sangue por ela. Quantos sábados, domingos e feriados perdidos em nome de um «ideal». Bem certo que me foram pagas as horas-extra, centésimo sobre centésimo, mas, quando terminou o conto-de-fadas, todos para a rua. Sem ai, nem mais.
Foi então, que se me reacendeu: porque você não deposita suas esperanças no amor? Não é necessário dizer que a reação durou poucas semanas. Talvez alguns meses, um ou dois pares deles. Comunismo? Muito vago. E então, eu pergunto: é possível confiar em algo ou em alguém?

domingo, março 27

Notas do Diário Oficial (II)

O Senado do Condado da Venárdia-Ocidental e a Casa Legislativa Popular, do Condado da Venárdia-Oriental, aprovaram, por aclamação, este último domingo, a elevação do Condado a Principado, dando aos dois Condes do título de Príncipes. A cerimônia comum, que teve lugar no Palazzo Bianco, sede do governo venardo-ocidental, teve a participação maciça dos populares (cerca de 10 ou 12, segundo estimativas da Gendarmeria Nacional). Embora os dois ex-Condes, agora Príncipes, sentados em tribunas diferentes, tivessem se estranhado um pouco, sob a vênia do Decano do Senado, apertaram as mãos; o Co-Príncipe Sinistro, em discurso pronunciado logo após a diplomação, enfatizou os esforços para a união do país; separado desde a cisão do governante em dois. Depois do discurso, a Régia Orquestra de Pífaros e Gaitas tocou a Marcha da Coroação, de Giacomo Meyerbeer.
Fica estabelecido, por ora, enquanto não houver a união político-monetária dos Principados, o sistema de Co-regência.
Sem mais,

sábado, março 26

Sábado de Aleluia

(música incidental: a marcha de La Damnation de Faust, de H. Berlioz)

É um sábado à noite; depois do dia ter sido o inferno na Terra de tão morto - com direito a sesta de duas horas - a vida doméstica delinea-se no debater eterno de assuntos estúpidos: crises por botijões de gás (afinal, cadê a droga da tubulação? estou à porta esperando), por frisos de portas não colocados, da grama que está a crescer livremente. Será que os meus não pensam em si e só na casa, como está a casa, o que precisa fazer, o que não precisa fazer? É triste não ter parada; tudo isso me enfastia assaz. Não há um lugar onde eu possa dizer-me: «ótimo, agora eu vou ficar aqui umas quatro horas, escrevendo ou estudando». Eu sou um bem público; fui socializado, fizeram a reforma agrária dos meus tecidos. E a calha a varrer, pequenos consertos domésticos. Mas eu me vingo: afinal, eu sei cantar várias árias de óperas diversas. Varrendo a calha, canto Celeste Aïda, trocando torneira Addio, fiorito asil, cortando grama a cavatina do Fígaro («tutti mi chiedono, tutti mi vogliono, donne, ragazze, vecchie, fanciulle, qua la parruca, presto la barba, qua la sanguigna, presto il biglietto... Figaro! Figaro!). E quando a vizinha começa a gritar histericamente com o seu filho: Victor! Desce já daí! Victor, sai daí, larga isso!; eu me vingo gritando de volta: Átila, larga isso, Átila, já disse pra não entrar de cavalo na cozinha!

sexta-feira, março 25

Fragmento

De Medo ou a melhor motivo para aprender húngaro, pequeno relato.
«Saudei-a com um bom-dia, apossei-me de uma xícara e enchi-a de café.
- ’Tá bom o café? - perguntou-me Maria-José.
- Excelente! - respondi-lhe como de costume, mesmo quando o café estava odioso. «E agora», pensei comigo; «vejamos... noz-vômica com sal-amargo é mil vezes melhor que essa porcaria de café laxativo». Pensei, nada disse. Maria-José voltou-se ruidosamente, deu um tabefe no escorredor de pratos.
- Então, faça melhor!
E saiu pisando duro. Decidi tomar cuidado, pois mesmo achando impossível, tomei, a contra-gosto, consciência do que estava o ocorrendo.»

terça-feira, março 22

Papel e caneta na mão

Alguns lêem no banheiro. Outros escrevem. Outros ainda fazem ambas as coisas. Mas nesse caso, não me colocarei a falar de quem faz o que aonde, mas sim, das anotações a esmo que fazemos, quase todo mundo as faz. Num tempo não muito remoto, eu tinha uma agenda, de papel; acabou sendo substituída por uma politicamente-correcta (faço questão do hífen) e ecológica agenda electrônica, presente de mamãe. «Puxa, mas não tem espaço pra escrever…», mas a minha egrégia genitora rebateu, que eu pensasse nas árvores que deixariam de ser mortas se fosse supressa a produção de agendas de papel. Esse é um exemplo do que costumo chamar de bom-mocismo (com todas as acepções negativas que caibam). Visto que eu usava muito a agenda para anotações diversas, tive de adotar cadernetas; mas não me adapto a elas. Dentro da minha bolsa há três cadernetas; e não pensades que cada uma tem determinado tipo de anotação – que a coloridinha tenha anotações sobre rótulos de conservas e a cinza tenha anotações esporádicas e aleatórias sobre cultura ucraniana; não todos os assuntos pertencem às três. Quando preciso ir atrás de determinada anotação, sou obrigado a folhear exaustivamente todas as três. Não raro, não encontro a anotação desejada em nenhuma das três; aí é certo que anotei nos papéis avulsos da minha pasta azul, em alguma folha do fichário ou no verso de algum texto fotocopiado.
Isso quando vou atrás das anotações que faço. Quase nunca o faço; minhas anotações – extensas e volumosas, que se juntassem-nas em volumes, o calhamaço talvez fosse maior que a Britannica. Volumosas, completas, detalhadas, porém inúteis. Não as consulto; somente faço tal quando passa o Halley ou tem eclipse solar; o pior é, quem já me acompanhou a palestras e eventos correlatos, sabe que ando sempre com papel e caneta. Talvez seja um tipo de compulsão. Com anotações de ofício é a mesma coisa, desd’os tempos de telecomunicações, eu tinha cadernos de operação de CAD e cadernos de campo, com anotações detalhadas de como isso e aquilo e também aqueloutro funcionam. Fazia-os com esmero, de preferência com canetas hidrográficas e com caligrafia de copista. Abria os cadernos para anota-las; e nada mais. No Banco idem, só que aí o caso era um pouco diverso, como a música de trilha sonora é o waltzer mais frenético e descompassado – talvez jamais tenha sido composto – que podedes imaginar, não dava tempo para ler nada e as informações marteladas pelo martelo do acerto na bigorna do erro.Mas mesmo assim as conservo em casa, blocos, cadernos; decímetros e decímetros cúbicos de conhecimento que não será mais útil para ninguém. Mas, é emocional, não me posso livrar delas. São como se fossem bichinhos de estimação, e às vezes, folheando-as ao acaso, mordem ou abanam o rabo tal qual.
p. s.: peço que não atentades com as segundas pessoas do plural terminadas à galega. Resolvi deixar do jeito qu'eu havia escrito.

segunda-feira, março 21

Os meus anos 1980

Vê, como passa o tempo. Vê, como te pungem as lembranças, como se fossem alfinetes, as mais sutis e como facadas as mais doloridas. Pontadas pelo corpo todo. Lembrança dum tempo antigo, no qual as tardes ainda eram livres e o sol punha-se tingindo o céu dum denso fulvo. Que os merídios tinham sol a pino, fulminando as formigas, mas o céu era azul. Vê, as lembranças dos dias cinzentos de chuva, vistos por detrás da janela da sala. Desenhos com hidrocor e giz de cera. Calendários de escritório abóbora, giratórios, em italiano. Missas, recomendações para a sexta-santa, quermesses; um tempo que não volta mais. Hoje as tecnologias tiram a graça a tudo, havia os Correios, esperava eu as cartas, envelopes imensos; telefone era coisas para os outros, celular, somente as membranas das aulas de Ciências. Quarta-feira era dia de hastear a bandeira e cantar o Hino Nacional. Nem o Hino Nacional de canta mais. Chapéus de jornal, espadas do mesmo material. Bigodes de guache. Fitas verde-e-amarelas de papel crepom. Domingo, o cheiro de molho levantava vôo por dentre as casas, no céu azul do domingo. Manjericão, jogo de futebol, visita à vó. Bolos, bolachinhas caseiras, conversas recheadas de sotaque doutros povos, histórias do Velho Mundo. Sonhos d’Europa. Discos de vinil com boleros, passodobles. Histórias duns bons tempos.

domingo, março 20

Cantos e recantos

Valeu a pena? Tudo vale a pena
se a alma não é pequena.
F. Pessoa, Mar Português
Há algum tempo, logo no início do ano, combinei com Cristiano de comer alguma coisa numa padaria, a dita Sabor do Trigo, Vila Carrão, Conselheiro Carrão esquina com a Dentista Barreto. Marcáramos às 19, mas como eu estava ainda a trabalhar no banco, terminei por chegar muito cedo. Descendo no metrô Carrão, tive tempo de ir a pé, o que me valeu uma tarde de imersão nas minhas lembranças e a vinda à tona de nostalgias. Com alguns bairros, tenho uma estranha relação, como se fossem outro país, e embora eu tenha circulado muito pelo Carrão, tenho estranha percepção lá; como se estivesse em Portugal; apesar de nunca ter estado em Portugal, é a associação que faço. Talvez porque a Casa dos Açores é lá, justo perto daquela padaria.
Desci do metrô e andei pela Radial, num ponto, percebi que haviam tirado a velha passarela da Estação Sebastião Gualberto, uma passarela de aço sobre a Radial até a linha férrea, do outro lado da rua. Quando eu era menor e passava de carro ali, com a minha família, a caminho da casa da minha vó, acha que todo aquele complexo era sempiterno, sempre estivera ali e sempre estaria, e apesar de toda a minha racionalidade, foi realmente um choque descobrir que nem a passarela e nem a casinha da administração - tal-qual palafita sobre a ferrovia - não mais existiam. Procurei pelo chão com os olhos algum vestígio: ei-lo, as pontas de uma viga de ferro, exaustivamente martelada; mas parecia que queria brotar, que as marteladas foram insuficientes e que dali, toda a estação rebrotaria.
Continuei andando, passei pela estrutura abandonada na esquina com a António de Barros; estrutura que está do mesmo modo desde a mesma época qu’eu passava a caminho da casa da vó; mas os metais foram pintados com zarcão, vê-se de longe. Aquilo na minha mente, não é um prédio - ou o esqueleto dele -, mas sim um monumento. A que? Talvez à incopetência.
Entrei pela Conselheiro e ali, o pequeno trecho na qual ela se torna mão única, uma calçada lúgubre, sinos começaram a repicar. Quase tive uma epifania, eram seis e qunze da tarde, corri até a esquina, mas os sinos já haviam parado. Era aquela igreja salmão, de cúpula de cobre, a São João Batista - que para mim vai ser sempre São João Crisóstomo, e o motivo eu não sei por quê - cuja torre vê-se da Aricanduva, marcando a leve subida daquele trecho, e que domina a vista de quem vêm pela Conselheiro Carrão, do bairro para o centro. Lembranças doutros tempos.
O Carrão na minha mente tem uma geografia bem curiosa, mas bem nebulosa. Embora eu desconheça quais são seus limites reais, o meu Carrão começa na esquina da XIX de Janeiro com a Taubaté e termina um pouco antes da Radial. O Carrão jamais encontrou a Radial, seu limite oriental é a Aricanduva. É uma espécie de Carrão mítico, cujos limites atropelam bairros inteiros, como se fosse o império de Alexandre. Sei que os bairros de baixo, às margens do rio Aricanduva têm outros nomes, e acima da Conselheiro, subindo o acentuado aclive em direção à Igreja de Santa Isabel, também, como a própria Vila Santa Isabel; mas para mim, são um «Carrão alpino», o último pedaço de Carrão antes da Vila Formosa, seguindo pela rua Lutécia. É o Carrão dos meus tempos de adolescência, que não passaram há tanto tempo assim, mas me parecem já muito longínquos. Um tempo de pracinhas redondas perdidas entre ruas mortas e calmas, com a vista sempre dominada pela igreja da Santa Isabel. Talvez outro motivo da associação com Portugal: é uma igreja majestosa, é possível vê-la de vários lugares e da sua torre se vê uma grande área. Uma das vezes que subi, era o domingo do tapete de serragem, que era feito no inverno.
Por coincidência, a última vez que estive lá - a acender uma vela para uma promessa - fazia um frio pesado, do alto da rua da igreja, esquina com a Picinguaba, daquela esquina ligeiramente alta e tristonha, como toda esquina dos bairros de subúrbio antigos, que têm um misto de passado e decreptude, senti que o mundo cabia no bolso do meu casaco; olhei para a torre da igreja, que velava ameaçadora sobre o céu cinza-chumbo, como se sempre estivera ali, desde antes do início dos tempos, e sempre vai estar, sendo a sede o tribunal do Juízo Final.

sexta-feira, março 18

Semi-vigília e nacionalismos

O policial chutando um mendigo. «Desanda, vagabundo!». As ruas aparecem num diagrama, com um líqüido verde correndo para fora, sendo limpo, como as vias nasais depois do rinossoro. Um comentário: «Se tivéssemos umas três plantinhas, faríamos a mesma coisa».Então, a cabeçada contra o vidro do ônibus me acordou delicadamente.
* * *
Na fila do ônibus, havia um elemento com os seguintes dizeres: Sou mestiço, sou pagodeiro, sou brasileiro. A que ponto chegou o nacionalismo bom-moço.

quinta-feira, março 17

Maldades

Maldade I
Quando se descobre que um império - no nosso exemplo será o britânico - foi totalmente desmoralizado?
Facílimo: quando um energúmeno chega ao máximo de sua estupidez, tocando com uma ocarina uma das músicas-símbolo do Estado. Rule Britannia tocada em ocarina é o cúmulo.
Maldade II
Reinol rima com urinol.

domingo, março 13

Notas do Diário Oficial da Venárdia

Usando das minhas prerrogativas, aproveito para desculpar-me em nome de Sua Alteza, mesmo que ele não tenha vontade de fazê-lo. Aos respeitáveis senhores representantes da Gazeta de Sodanlykä, da Associação Cultural Indiana, e da Santa Sé.
  • Considerações sinceras ao egrégio sr. Cecil Rhodes e o conde afirma que aceita sim de bom grado a Ordem do Império Britânico; a única objeção do Conde foi quanto ao nome da condecoração, afinal, qual Império?! E a data proposta pela Embaixada do Reino Unido está confirmada, 12 horas em Buckingham.
  • Aproveito a epístola para pedir a duplicação de salário, pois ter de representar dois condes não está sendo bolinho; cada um aprontando a sua maneira e de modos diversos; um em passeio pela Europa, outro no Château de la Bureaucracie. Fato de agora existirem dois condes, provocou a cisão do Condado da Venárdia: o Condado Popular e Democrático da Venárdia Oriental e o Condado da Venárdia Ocidental. O blogue continua a exprimir a opinião dos dois Estados, tendo a Onu como mediadora pela minha pessoa, nomeada representante, observando a Convenção de Genebra.

Com altas estimas e considerações aos nossos leitores e concidadãos.

Compêndio de História delirante

A batalha de Albernaz foi decisiva para reconquista da península; o califado de Puertasfuera foi posto para fora pelos católicos-ortodoxos japoneses, os mesmo que tomaram Constantinopla no século XVII. Os puertaforenses voltaram para o norte da África cantando efusivamente «Tornerò, tornerai».
O monte Grappa foi tomado pelo exército italiano no curso da Primeira Grande Guerra; tanto que o que nos indica a canção: «Monte Grappa tu sei la mia patria...»; o grande problema não foi o porre do exército italiano, mas sim a ressaca. Afinal, eles nunca haviam visto tanta grappa.
A Defenestração de Praga ocorreu quando dois bispos católicos e um protestante discutiam sobre uma janela. O protestante para provar que a janela era maior do que os católicos diziam, empurrou-os até o lado de fora para ver bem o tamanho. O que ele esqueceu é de que estavam no sexto andar do palácio episcopal, pequeno detalhe.
A Primavera de Praga foi aquela que em vez de desabrocharem as flores, desabrocharam tanques soviéticos.
Júlio César, o general romano, disse Alea jacta est, porque era um jogador inveterado.
Os portugueses, quando colonizaram o Brasil, introduziram a cultura de bananás, fruta híbrida de banana e abacaxi; muito consumida na Europa do século XVII.
Os selos só foram inventados depois que inventaram a lingua para lambê-los. Afinal, como seriam postos os selos nas cartas?
Mussolini foi morto pelo povo na piazza Loreto somente porque não tinha mais a mamma viva para defendê-lo.
A Sicília foi invadida na Idade Média pelos barbacenos, raça de bárbaros mineiros.
Esparta era a potência comercial da antiga Grécia, principalmente depois que a sopa negra virou sucesso de vendas, também, qualquer produto vende tendo Aristóteles como garoto-propaganda.
Depois do extermínio total dos judeus, o Governo Nazista pretendia transformar os campos de concentração numa rede de fast-food.

sábado, março 5

O Conde partido ao meio (II)

O lado direito – o mais malvado – do Conde, que já se pensava morto, está vivíssimo e em visita pela região do monte Pyhä, na Finlândia e foi reconhecido pelo jornalista Paavo Läkkinen, locutor da rádio Voz de Sodankylä (da cidade mas próxima, ao norte do monte) e editor-chefe do jornal local, a Gazeta de Sodankylä. Apesar da fama de mal humorado, o meio-Conde concedeu uma entrevista para Läkkinen na rádio, posteriormente transcrita no jornal.

É um prazer tê-lo conosco, Conde, nem que seja uma fração; visitando essas paragens esquecidas da Finlândia, e o que mais me surpreendeu, num finlandês impecável!
Eu que agradeço, Paavo, a honra de poder falar nos seus microfones, nem que seja com uma fração dos meus dentes e eu nem possa morder a sua mão. Oportunidade realmente única; só não sei o que você quer saber de mim, já que nada tenho para falar. (risos).

Então eu puxo um assunto; o senhor, que é um renomado literato do seu país, o que acha de Shakespeare?
Você foi extremamente irônico, visto que sou o único literato do meu país, o meu país é móvel, é sempre a área de cinco metros ao redor de mim (risos). É difícil que outro literato entre no meu perímetro (risos). Shakespeare é um bom dramaturgo, certo que não chegue à altura de Gil Vicente, mas é bom, seu único e grande problema, é ter escrito em inglês, língua que além de problemática e pobre, vocabulariamente falando, tem o agravante de ser dilacerada por pronúncias horrorosas, como a canadense e a americana…

Por que tanta bronca da língua inglesa? E qual seria a melhor pronúncia do inglês, já que o senhor mostra antipatia pela pronúncia das Américas?
Línguas que não têm diacríticos não são confiáveis. Fora ser a língua dum país onipotente e sem nome. Quem pode confiar na língua duma superpotência que não tem nome?

Não tem nome? Como?
Os Estados-Unidos! Esse país-bestião! Estados-Unidos da América por acaso é nome de país? Espanha, Portugal e França, por exemplo são nomes de países. Agora um nome que contém a forma de governo e o nome do Continente; afinal, nós cá também somos América! Quanto à pronúncia do inglês, Charles Aznavour tem a melhor pronúncia que eu conheço; assim como a melhor pronúncia do francês é de Amália Rodrigues. Ela cantando La vie en rose é magnífico; voltando à pronúncia do inglês, tenho minhas preferências ao Benigni Pattern. E há ainda o Inglês da Rainha. Dos males, os menores.

Analisando a última resposta, vê-se claramente o seu eurocentrismo; por que?
Na minha infância, a terra do ouro preconizada pelos meus mais próximos era a Europa; porém, o peso cultural do Velho Mundo terminou por se tornar uma mala que arrasto onde vou; tenho ojeriza aos nossos vizinhos territoriais – e ainda bem que estamos longe das fronteiras (risos); estabeleci meus laços culturais com a Europa, principalmente a Europa Mediterrânea, latina, certamente.

O senhor disse Europa latina e mediterrânea; mas há alguns dias, o senhor fez – em público, num bistrô em Angoulême – uma apologia ao colonialismo inglês, não é verdade?
Sim, sim, é verdade. O assunto surgiu quando conversava com dois velhos amigos, Daniel Séchard e Antoine Chardon, a Índia, por acaso entrou na pauta da conversa. Por mais que haja ioga [o «o» de ioga foi pronunciado enfaticamente aberto] e budismo e outras tralhas… orientalizantes, continua sendo um país que me inspira repulsa. Vacas cagando para todo lado e sendo tratadas como reis; vacas na minha concepção não passam de um amontoado de bifes que pastam. E talvez seja pela falta de higiene dos indianos – o fato de comerem com a mão, limparem-se com a mão [uma careta de nojo] e as ruas de Nova Déli terem um odor insuportável! É por isso que os ingleses nem calçada queriam dividir com os indianos. Justo!

Mas essa é uma posição muito polêmica…
Ora, Paavo! O que mais me enoja nos dias de hoje não são as posições polêmicas; mas sim esse falso bom-mocismo que impera hoje. As pessoas escondem suas idéias hoje mas as destilam todas do mesmo jeito, às escondidas. O Homem seria muito melhor se vivesse mais para si e sua colectividade isolada ao invés de ir meter o bedelho no que dizem os outros, a respeito do que quer que seja.

Inclusive a defesa do colonialismo?
Sim, inclusive; o colonialismo europeu à moda antiga. Essa história de domínio econômico é colonialismo de maricas, de moçoilas. Tem de ser viril e másculo para pôr em vigor um domínio político e directo; chamar determinado território de colônia ou protectorado. As antigas colônias européias em África, por exemplo, talvez tivessem mais mobilidade do que nós, uma republica «independente», mas presa a compromissos econômicos absurdos com órgãos financeiros internacionais. Quanto ao colonialismo, (pigarreia) há certas regiões do globo que não há solução; meu caro, veja o caso da África – é um barril de pólvora, foi só os europeus começarem a retirar-se que os velhos… tribalismos voltaram à tona e jogaram a região no caos e guerras endêmicas, salvo pequenas exceções. Embora parte disso – sejamos honestos – foi causado pela arbitrariedade das fronteiras, (pausa) é só ver como elas, em várias partes são retas. (gesticula traçando uma reta no ar) As fronteiras uniram povos inimigos e separam outros povos; e isso se transpõe à política: guerras civis, como a de Biafra na década de 1970, a separação da Eritréia. Talvez fosse necessária a permanência dos Europeus mais algum tempo em África. Sinto que a Finlândia não tenha podido, com toda sua pujança cultural, ter tido colônias, ao contrário, ter ficado tanto tempo não mão dos suecos e dos russos…

E o que o senhor quer dizer com tudo isso?
(sorri ironicamente) Que a idéia que todos os povos têm o mesmo nível de desenvolvimento intelectual e cultural é uma grande balela; veja a música européia, ocidental do século XIX. A Ásia continuava com suas monótonas toadas pentatônicas, a África com seus batuques e percussões; isso de igualar as culturas é um traço perigoso (engrossa a voz) do bom-mocismo. Veja também no nosso país, na nossa grande Pátria-Mãe; iniciativas culturais para os carentes resumem-se em ensiná-los a batucar em latas e fazer malabares e eu pergunto para você: onde isso tudo termina? Nos semáforos, ao invés de venderem balas, macaqueiam com bastões ou engolem fogo…

Então o senhor critica duramente essas iniciativas culturais?
Culturais?! (ri) Não me faça rir! Certamente; são iniciativas inúteis. Precisamos de escritores, de oradores, de bons políticos, de homens de governo, de estadistas; e em breve seremos uma nação de circenses e atendentes de telemarketing. Pão e circo; é isso que querem as elites; por isso o apoio extra-oficial do Poder Público; mantendo o proletariado ocupado com malabares e batuques, as oligarquias reinantes e a elite burguesa podem continuar mandando e desmandando, à revelia da população. Devem ensinar nossas crianças a ler Camões desde pequenas, não fazer como fazem, por Os Lusíadas como uma obra intransponível e dar-lhes de ler versões proseadas! Por favor, isso me enoja! (faz um careta de nojo) O cidadão deve ser educado a ponto de poder entender o que está lendo; hoje não, simplesmente pula-se; como se Camões nada representasse.

Mas Camões é literatura portuguesa… não seria melhor criar as crianças sob a cultura brasileira?
A cultura brasileira é uma quimera, meu caro! Somos ainda portugueses ultramarinos sem identidade; queremos abandonar a Europa, mas não temos nada para substituir; por isso o actual vazio cultural, essa música de bordel que se desenvolveu… e somos péssimos brasileiros justamente por que tentamos nos livrar de uma herança que nos é um tesouro, embora certos eurofóbicos vejam-na como um empecilho; é a minha mala… somos uma civilização, querendo ou não, luso-brasileira; e a idéia do antigo Reino Unido [não o inglês, mas a monarquia dual Portugal-Brasil] de 1815 não seja tão má idéia assim.

Mas, música de bordel? Que música de bordel?!
Esse dito Axé, de altíssima conotação sexual. Música para ser boa não precisar ter duplo sentido! Porém, o povo emburrecido somente dá atenção e diz gostar dessa música de péssima qualidade, esses axés, música sertanejas – não a de raiz, veja bem, mas essa música sertaneja urbana, desculpe-me o baixo linguajar, essa dor-de-corno diarréica. Gira-se o selector do rádio, ei-las todas lá, uma rádio pior que a outra; e o Poder Público, ao invés de tentar mudar essa situação por políticas culturais, senta em cima. Recentemente fecharam a Sinfonia Cultura. Onde já se viu fechar uma Orquestra?!

O senhor citou há pouco os atendentes de telemarketing. Qual o seu problema com eles?
Na verdade; seria: qual o problema deles conosco? Com um curso ridículo de vendas – essa palavra também me enoja enormemente – crêem-se onipotentes sobre o seu interlocutor; passam a acreditar que com a insistência, o interpelado irá comprar o produto oferecido. O que poucos sabem é o ódio que inspira a insistência; principalmente a invasão causada pelo telefone. Interrompem sua leitura, seu jantar. Sei que isso é muito individualismo, e que o individualismo é causa de muitos senão de todos os males da nossa sociedade; mas sentem-se no direito de falar-lhe à sua revelia! Despejam uma centena de palavras sobre você, rapidamente – o intuito é confundir e não deixar que você raciocine; sei porque tive, certa feita, de freqüentar um desses famigerados cursos; esse é um comportamento que se baseia na igualdade comportamental dos seres humanos; o que é tão mentiroso quanto acreditar que exista uma raça ariana ou que o ser humano foi gerado desde Adão e Eva…

O senhor é ateu ou agnóstico? Essa é uma pergunta que aflige seus leitores, visto que contradiz as Escrituras…
As Escrituras para mim são literatura; ótimo como literatura. Inclusive, para entender certas obras, é necessário ter conhecimento dos Livros Sagrados; próprio como disse Borges certa vez, indagado de qual era seu livro predileto – se não me falha a memória – disse que era a Bíblia. Indagado do porquê, respondeu sabiamente: «porque a Bíblia é o único lugar onde se passa das uvas ao porre em três versículos»; e quanto ver a Bíblia como literatura, tomo partido de Borges; a Bíblia é base dos escritores da Cristandade, pois bem ou mal, a Civilização Européia gerou-se sob a égide da religião cristã; católica ou protestante, pouco importa.

E sobre a religião em si, qual a sua opinião?
Quando do ponto de vista espiritual, a religião é totalmente descartável, o Homem não precisa disso para viver; e corresponde somente a um clamor interno e primitivo frente a uma realidade inexplicável; porém, há o outro lado da moeda, o lado do mecenato que exerceu a Igreja. Se não fosse ela, o Coliseu não existiria mais; não haveria a Basílica de São Pedro, e tantas outras obras de arte pictóricas e arquitectônicas. Enquanto os comunistas – embora simpatize muito com eles – saíram pela Rússia a destruir igrejas…

Falando em posicionamento político, o senhor acabou de declarar simpatia pelo comunismo, pode especificar, detalhar-nos mais?
Sou pela linha do socialismo; embora nada tenha lido de Marx ou Engels, simpatizo com Lênin, principalmente no seu livro Ditadura do proletariado e poder soviético. Muitas pessoas criticam o socialismo, porque não o conhecem ou conhecem somente o lado ruim da sua aplicação na Europa Oriental. Aplicação parcial: aspectos bons e ruins. E pelos aspectos ruins, resolveu o povo daquela região abdicar de todas quantas suas conquistas para poder comprar bugigangas e atravessar fronteiras; a maldita comichão que ataca os seres humanos quando estão bons e quietos.

E quanto aos problemas contemporâneos que o senhor elenca; como a desinformação geral e a falta de interesse da população por assuntos culturais?
É culpa da nossa retrocultura argentária; enquanto o mundo girar em torno do dinheiro, não há chance de recuperação.

Bem, nosso tempo esgotou-se e eu gostaria de agradecer a presença nos nossos estúdios do Conde De Venardis, ou melhor, de parte dele. Muito obrigado, Conde.
Eu que agradeço a oportunidade. E aproveitando que você está tão solícito, você não saberia qual o horário do próximo trem para Helsinque, saberia? Aqui faz muito frio… e meio-Conde será por enquanto, pois estou vendo com um médico austríaco a cirurgia de reconstrução da outra metade do meu corpo… ou você acha que eu quero voltar para São Paulo e continuar a ser um bancário estúpido com aquele meu eu-esquerdo, tão bonzinho que dá ânsia de vômito? Nem morto! Arrivederci, para você, seus pés gelados e sua cara vermelha! Lapões…