quinta-feira, junho 30

Imparcial?

Até hoje, assim como a política, a imprensa brasileira é-me assaz inquietante. Como por exemplo, nos recentes escândalos envolvendo o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) com os Correios, com o Mensalão, e agora com Furnas; certo que são casos que podem ocorrer em qualquer país, até mesmo na Grécia; mas o que mais me chamou a atenção, foi a matéria publicada no Estadão em-linha, da qual transcrevo um trechinho:

«O deputado Roberto Jefferson (RJ) voltou a usar o jornal Folha de S. Paulo para fazer novas denúncias de corrupção envolvendo o PT e o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. As acusações foram publicadas no dia em que está marcado o depoimento dele na CPI dos Correios. [...]»

Trata-se do primeiro parágrafo da matéria, e veja como vem posto o nome do jornal concorrente, a Folha, como se ele também estivesse envolvido directamente nos fatos, esse voltou a usar, está sendo usado, está sendo manipulado causou-me muita estranheza na leitura; se eu estiver errada, na órbita do meu português deficiente e europeu, corrijam-me, por gentileza.

quarta-feira, junho 29

Transporte público e maravilhas

Passa um bonde do lado de fora da minha sala, no corredor; e ninguém me avisou.

terça-feira, junho 28

Conduta social

É assustadoramente incrível como as pessoas se prendem a valores morais e sociais. Um bom exemplo é a minha amável genitora; no último sábado de-manhã, depois de eu ter passado no dentista para uma consulta rotineira, saímos e fomos ao mercado; e devo admitir que supermercado é um fator de risco para a minha sociopatia crônica.
Saímos e quando fomos atravessar a rua, um energúmeno motorizado viu que íamos atravessar e acelerou ainda mais. Cumprimentei-o com algumas palavras pouco lisonjeiras e um aceno de mão. Minha mãe horrorizou-se:
- Uma hora você vai encontrar um mais ignorante que você, e aí, sim, quero ver…
Mantive-me dentro do mais menefreguista e cínico o possível:
- Deveria ser feita uma emenda à Constituição, permitindo a qualquer cidadão notoriamente de bem, sovar e caçar a chutes qualquer um que lhe incomode ou lhe constrinja, desde motoristas domingueiros até testemunhas de Jeová que batem na nossa porta domingo de-manhã.
Estávamos eu e minha mãe, numa ilha de concreto, esperando para atravessar a segunda pista.
- Quê? Você ficou demente?! - começou a berrar a minha mãe. - Onde já se viu? Você tem de ter tolerância com as pessoas…
- Cansei… - se eu fumasse, seria o momento ideal de ter acendido um cigarro.
- Você não pode tratar as pessoas desse jeito! Não está sozinho no mundo…
Aglomeraram duas senhoras atrás de nós, com odiosos carrinhos-de-feira.
- 'Tá, mãe; agora pára de gritar… estámos no meio da rua.

segunda-feira, junho 27

Liberdade, liberdade, Ocidentais!

É como costumo dizer, Orientais, para mim, são os uruguaios.

sábado, junho 25

O Organograma

Aquele domingo de-manhã, ele levantou-se cedo. Estava frio, paramentou-se de um casaco e saiu de casa antes que o sol despontasse no horizonte, que era dum azul ainda profundo. Caminhou até a pracinha, agora silenciosa e deserta. Sentou-se no banco de concreto gelado, olhou em volta: a imundície da festa da noite anterior (talvez terminada há pouco mais de uma hora, uma hora e meia) juncava o chão. Copos, latas de cerveja, guardanapos sujos; nos cantos mais escuros, distinguiu um preservativo usado.
Depois da inspeção, fixou a vista no horizonte e em alguns minutos o sol que vinha nascendo banhou-lhe o rosto. Sorriu; pelo menos o prazer de observar o nascer do sol ninguém lhe podia roubar, como o tempo e o destino, às furtadelas, levavam-lhe as esperanças e as outras alegrias aos quilos. Observou o sol a ganhar altura, levantou-se e saiu a dar um passeio cantarolando uma ária melancólica qualquer, talvez fosse Verdi, ou quem sabe Mussorgskij. Sua consciência era plena de uma única certeza: ele era sim, o último do maldito organograma que fazia as relações dos habitantes do planeta. Continuou a andar e a cantarolar, na rua banhada de sol de uma manhã preguiçosa e silenciosa de domingo.

sexta-feira, junho 24

Operação Dominó

Ora, mas que diabo ocorre com os políticos nesse país; certo que a política nenhures é lá muito limpa, mas com Jefferson, Dirceu e Bolsonaro, as coisas têm se mostrado mais-que-imundas. E o Deputado Bolsonaro é um belo dum falastrão. Do Estadão.

quinta-feira, junho 23

Limalha, ferrugem, azinhavre

Se os cérebros das gentes fossem de cobre, já teriam virado há muito uma massa farelenta de azinhavre dentro dos crânios martelados, pelo sal da mediocridade e pelas intempéries da rotina.

quarta-feira, junho 22

Novas no ar

Um blogue comunitário e informativo: A Rádio-difusão Estatal Venarda.

O jogo do bicho no ambiente corporativo

Todo escritório tem alguém que joga no bicho. Sim, eu sei: é ilegal, é clandestino, etc., etc. e tal; mas sempre tem. No meu escirtório, é o chefe da segurança; todas as manhãs, ele passa em giro pelos setores, munido de uma caneta esferográfica e um bloco de anotações, e indaga a quase um a um, o que sonhou naquela noite. Resultados da oniromancia anotados, ele fecha-se em sua sala e de uma ignota e complicada combinatória, chega a determinados milhares para a aposta.
Hoje, eu de costas, voltado para o meu computador, vejo seu vulto pelo canto dos olhos, tal qual uma geladeira a andar e já das mesas mais à frente, já indagava dos sonhos.
— Então, Virgínia; o que você sonhou.
Essa hora do dia era sagrada para o Chefe; tanto que o walkie-talkie começou a resmungar, ele o puxou da cinta:
— Daqui a pouco, daqui a pouco! Agora eu ’tô ocupado!
Repôs o comunicador no cinto; mas a onda de risos murmurados correu pela sala; ele impávido, retomou donde havia parado:
— Então, Virgínia…
— Bem, eu sonhei que estava no circo… tinha um show de palhaços…
— Hum… show de palhaços… - fazia ele ávido.
— É; e depois vinham, equilibrando-se uns sobre os outros, uns elefantes…
— Elefante! – gritou o Chefe, atraindo a atenção dos quase vinte funcionários; anotou febrilmente no caderninho.
— É, mas eles caiam e a platéia saltava, cortava os elefantes e começava a fazer churrasco…
O paladino de preto ficou lívido e fez uma expressão mista de pasmo e desgosto. Riscou a anotação. Deu uns passos; e distraído e parou na próxima divisória.
— Vitório, meu querido… como vai?
— Indo, indo…
— Mas então, diga lá; o que você sonhou?
Vitório fez-se lívido.
— Nada…
— Vitório? Nada?! Com essa cara você acha que engana quem? Vai, pode ir me contando!
Vitório sentado fez sinal para que o Chefe se abaixasse, e disse-lhe a meia-voz:
— Sonhei com a chefe.
O Chefe olhou para ele com o semblante radiante:
— He, he! Cobra na cabeça! Mas, só isso?
— Não… uhm… na verdade…
— Na verdade o quê, homem?!
— Chhh! Fala baixo… na verdade, eu sonhei… que estava na cama com ela; é isso. – Vitório fez-se roxo.
— Deus-do-céu! – exclamou riscando novamente o caderninho. Persignou-se e andou mais um pouco. – Adamastor, meu velho! E aí, que você sonhou?
— Nada.
— Como nada?! – fez assustado.
— Nada; durmo do jeito que acordo.
— Mas dizem que todo mundo sonha…
— Se sonho, não lembro…
— Fuf! ’Tá ruim o negócio aqui hoje, hem? – resmungou o Chefe. Andou mais um pouco e parou diante de Nestor, que nem de jogo do bicho entende.
— É, Nestor; não temos prognósticos bons… me diz aí o que você sonhou.
— Então; eu sonhei com geladeiras…
— Geladeiras?!… mas nem tem pingüim no jogo do bicho!
— …geladeiras que se usavam de trenó, puxado por gente…
— Geladeira-trenó?!
— É, e tinham umas ucranianas brincando disso…
— Ucraniana? Que diabo! Como você sabe que eram ucranianas?
— Elas falavam ucraniano.
— Mas, Adamastor, você fala ucraniano?
— Não…
Começou o Chefe a retirar-se.
— Acho qu’eu não vou jogar hoje…
— No meu sonho, tinham ainda uns celulares que voavam… ajuda.
O Chefe fez que não com a mão; não dava certo. Mas que povo mais sem imaginação.

segunda-feira, junho 20

Diários de viagem (IV)

Preparativos derradeiros

O sono foi pouco, agitado e absolutamente falhado; pontualmente às 6, o telefone começou a tocar, dando-me um belo dum susto, atendi antes do segundo toque.
— Bom-dia, são 6 horas. – avisou a voz fanhosa de sono do funcionário do hotel do outro lado.
— Anh? Ah, ’tá! ’Brigado. – respondi com uma voz ainda mais falha e rouca.
Esfreguei os olhos e sentei na cama; como todo dia, tal-qual acordando em São Paulo, o céu estava começando a azular-se. Fui ao banheiro para as ordenações consuetas matinais e enrolado num cobertor peguei o texto já feito e comecei a relê-lo, a fim de revisá-lo. Fiz diversas notas aleatórias e inclusivas, que escorregavam na margem da folha e iam para o verso indicadas por inscrições de “v/v” (vide verso); no final a folha estava ilegível.
— Não vou poder ler isso na hora; gira folha pra lá; pra cá, vou acabar me perdendo; tenho de passar isso a limpo. A minha cabeça entrou no stand-by (1) e do lado de fora, havia uma chaminé de lata em três segmentos desalinhados, uma verdadeira chaminé de Pisa, ou as torres de Bolonha.
Me virei para pedir algum conselho para o travesseiro, quando o telefone tocou novamente e de novo me assustou. Eram 8 e meia passada.
— Alô?
— Alô, buongiorno. Vamos tomar café?
Eh, ciao, buongiorno; vamos sim; eu já me troco de desço.
Pus uma calça jeans e desci. Encontrei as três moças no restaurante do hotel, devidamente assentadas; peguei um copo de suco e uma fatia de abacaxi e juntei-me a elas.
— E então, - sorri – dormiram bem?
Ivy respondeu primeiro.
— Hum-hum. Dormi.
Renata e Juliana também. Conforme elas iam falando, o meu estômago não queria aceitar o suco e o abacaxi que eu estava tentando comer. Renata relatou sua preocupação sobre a apresentação, de certo arquivo que não recebera.
— Bem, - disse eu – eu também preciso arrumar o meu texto, por causa das alterações que fiz… o original está um horror, não dá pra ler; vou ter de ir até alguma lan-house, será que tem alguma por aqui; eu olhei na lista telefônica e só tem duas…
Juliana mostrou um folheto. Era um folheto de lan-house; com um mapinha mais que explicativo; era a algumas quadras do hotel.
— Vamos lá, Renata? Eu só subo no quarto pra pegar os originais e nós podemos ir.
— Tudo bem.
— Eu e a Ivy esperamos você aqui. – disse Juliana.
Terminamos o café e subimos; cinco minutos depois, estava já eu no térreo, Renata chegou e fomos, subimos a rua perpendicular até cruzar a avenida Brasil, era nela mesmo só que à esquerda, algumas quadras para baixo. Não vimos o número e quase passamos reto, na verdade, nós passamos reto e voltamos. A porta e a escada não davam a entender que havia um lan-house ou qualquer outra coisa no primeiro andar; mas o número era aquele. No final da escada, uma porta e com letras de plástico coladas na parede: telefones, internet, impressões. Por dentro da porta, uma ante-sala com um balcãozinho, detrás do balcãozinho, uma mocinha de cara simpática; não bonita, mas simpática.
— Bom dia – fez a Renata – nós precisamos usar a internet…
— Bom dia – fez, por sua vez a mocinha – é só ir ali, no número sete – e apontava para um dos cômodos onde havia umas divisórias de fórmica – aquele está livre.
Isso tudo dito num português que lembrava muito aquele português dos Les Luthiers na música Bossa Nova; ou seja, a mocinha era de fala hispana, muito provavelmente, pelos traços mestiços, paraguaia.
Sentei-me diante da máquina e Renata puxou para si uma cadeira. Olhei o meu e-mail, atrás do presunto arquivo e nada; Renata olhou o dela e nada também.
— Hum. – fez ela – deve estar no do da Ju. Eu vo’ até o hotel buscá-la.
— Certo, eu fico aqui e continuo a editar o meu texto.
Renata saiu e eu continuei digitando; a única coisa que me vinha à cabeça era a Cantata para a abertura da Exposição Politécnica, do Tchaikovsky, talvez porque tivesse a ver com feira, evento e ser de um tom ao mesmo tempo grandioso, dramático e melancólico.
Nesse meio tempo, entrou que presumi ser o pai da moça, que falava com ela em castelhano. Depois, entrou um mocinho que precisava procurar na Internet uns artigos de Sociologia, mas não sabia mexer em nada, e chamava o paraguaio de cinco em cinco minutos. Depois entrou um mexicano – sei porque ele se anunciou como tal – que precisava fazer uma ligação para sua terra. Mais um pouco, chegaram Renata e Juliana.
— Deixa eu dar uma olhada no meu e-mail… eu trouxe o CD para gravar o arquivo; tem gravador? – perguntou Juliana.
— Hum… eu acho que… - não deu tempo para que eu pudesse completar a frase, a mocinha da loja já estava junto de nós:
— Tem sim.
Por sorte, parece que o bendito arquivo estava ali; era uma apresentação de slides. Gravaram o CD.
— A gente ’tá indo prò hotel, ’tá? – disse Ju.
— Tudo bem; eu acabo aqui, imprimo, volto no hotel, me troco e vou; mas, qual ônibus que pega pra ir pra lá?
Ju me deu um outro panfleto da lan-house com o nome de três ônibus anotados: Três Lagoas, Três Bandeiras e Gleba Guarani.
— Saem do terminal de ônibus.
— E onde está, aqui no mapa, o terminal de ônibus? – perguntei.
— Aqui. – fez Ju com o dedo.
— Então eu tenho de ir pra lá? – apontei com a direita.
— Não, você tem de ir pra lá. – fez Ju apontando para a perpendicular da minha direita.
Essa discussãozinha arrastou-se uns dois minutos, até que o paraguaio interviesse.
— No, vocês están aqui. O terminal é uma quadra da avenida JK…
— Certo - fiz eu – que é pra lá, né? – Apontei a minha direita.
— No – fez o paraguaio – você pega a República Arxentina e vai sair quase em frente ao terminal, ou melhor, vai sair bem em frente; no é lonxe.
Agradeci ao paraguaio, depois de tomar as notas necessárias.
— Qualquer coisa – disse ainda Ju – você liga no meu celular.
— Po’ deixa’. Vejo vocês lá rapidinho.
Fiquei um pouco ainda na lan-house, coisa duns 20 minutos, e pedi para a mocinha imprimir as minhas folhas; o que demorou um bocado, porque a impressora era muito, mas muito lerda. Quando fui pagar, a mocinha simpática era só sorriso, mas em compensação tinha um outro paraguaio, mais novo (irmão, namorado?) que estava com cara de poucos amigos; mas eu estava tão nervoso que paguei o que devei e chispei em direção ao hotel.
Pus uma camisa, uma calça, provi a bolsa dos papéis necessários e no saguão perguntei a direção do terminal; a moça que era a titular da recepção no momento, indicou-me a esquerda. Ainda bem, pois o meu senso de direção me indicava a direita. Em pouco menos de cinco minutos, estava eu no terminal de ônibus. Primeiro, tive de rodar toda sua quadra, pois não achava a entrada; o que tive de perguntar ao segurança; que depois, sarcasticamente me respondeu:
— Ah, eu vi o senhor indo lá pro fundo, dando a volta, não imaginei que estivesse perdido…
Finalmente, tendo pagado a tarifa de R$ 1,85, entrei no terminal de ônibus e esperei o ônibus no local indicado. Apesar de não tê-lo reparado na hora, na visita posterior ao local, pude observar a curiosa estrutura do terminal, um misto de traves de madeira, rusticamente trabalhadas e encaixes de metal. Realmente muito interessante e criativo.

Notas:

(1) stand-by (informática); estado no qual os computadores, depois de algum tempo desativados, apagam o monitor e ficam no aguardo para serem ativados; modo-de-espera; usado aqui no caso como eufemismo para que está pasmando.

Veja ainda:

Diários de viagem (I)
Diários de viagem (II)
Diários de viagem (III)

quinta-feira, junho 16

O primeiro e último céu de São Paulo

Mañana es solo un advérbio de tiempo.
(De Cartón piedra, Joan Manuel Serrat)

Tarde de outono. O sol moribundo ainda derrama uma luz diáfana, abóbora, primitiva sobre os objetos, produzindo um opaco jogo de sombra-e-luz. O ocaso tampa uma cidade onde todos vivem única e exclusivamente por si, onde pessoas de pensamento rastejante pululam dos seus escritoriozinhos para suas casa; escritórios cujas divisórias têm nomes apropriadíssimos como baia (onde se põe os cavalos) ou células, colectivas, onde funcionários-vacuolos-digestivos fagocitam-se com humor grosseiro de botequim.
São ambientes impróprios, senão proibitivos para qualquer tipo de raciocínio, pois parece ser habitado por esses já citados funcionários que trabalham e têm com alguém que lhes fala algo a mesma reação que teria uma samambaia. E olhando a ladeira General Carneiro, desde o Parque Dom Pedro, aquele mar de cabeças ou subindo ou descendo, as formigas acéfalas.
Por trás de preceitos politicamente-correcto (que parece ser o pensamento dominante hoje), mantêm-se a grei submissa e amedrontada, num país onde a bandalheira corre solta e, segundo o adágio popular, onde “o exemplo vem de cima”. Mantêm-se os cérebros inoperantes pela ausência de cultura (não me venham com exemplos do cinema, visto que a maioria dos filmes são de manipulação das massas, principalmente os estadunidenses).
Além da já centenária cultura do trabalho imposta, “o trabalho dignifica” e o diabo-a-quatro; isso certamente foi algum aristocrata que inventou o bordão, antes da Revolução Francesa, assim a choldra ignara pode acreditar que disso sai algo. Vistas as actuais condições de trabalho no geral, nos filões de emprego, este se tornou algo extremamente aviltante e pouco digno, principalmente pela falta de opção e o fato de ter-se de agarrar à primeira vaga que aparece. E como tudo gira ao redor do dinheiro, esse mercantilismo vomitivo provocado pelo consumismo desenfreado, de nós, primatas vaidosos, gerou toda uma cadeia de empregos odiosos: atendentes de telemarketing (porque o senhor não quer o cartão? et coetera e tal), “colaboradores” (leia-se vendedores chatos e insistentes), pesquisadoras, e hoje até fui surpreendido por um truquezinho muito sem-vergonha do Citibank; deram-nos uma barrinha de chocolate à porta do escritório (e já dentro das catracas!) e um cupom para preencher com seus dados pessoais para ganhar uma cesta de café-da-manhã assaz mequetrefe, a idéia é conseguir seus dados para começar aquela aporrinhação de vender cartão de crédito por telefone. Maldito quem inventou o cartão de crédito; e Graham Bell também deve estar nas profundezas do inferno.
Eu juro que tenho medo de ver como estará o mundo daqui a dez anos; por isso não tenho coragem sequer de pensar em ter rebentos. Faço questão de ser intragável e extremamente cínico, de humor ácido e destrutivo nesse mundo de sorrisos remunerados; realmente, eu quero que o mundo se exploda e o circo pegue fogo, pois, “amanhã é só um advérbio de tempo”, e o sol, o mesmo de milhões de anos, que aparece no céu todos os dias para nos lembrar da nossa efemeridade, continuará, apesar de tudo, brilhando abóbora nas tardes de outono.

segunda-feira, junho 13

Diário de viagem (III)

A noite mais longa do mundo

No balcão do hotel, o atendente, loiro e sonolento; apresentei-lhe o voucher depois do habitual boa-noite.
— O senhor preenche esse formulário pra mim, por favor.
Era um formulário da Embratur. Apossei-me da caneta sobre o balcão e comecei a garranchar os meus dados pessoais, o de sempre. O atendente me vira acenando para cima, e provavelmente ouvira também as meninas chamando.
— He, he. Elas tinham ligado no momento exato que o táxi inclinou aqui, acredita? – disse o balconista.
— Sério? – fiz eu num misto de fastio, surpresa, cansaço e nervoso.
— Sim, sim. Ligou uma das moças e disse: “Boa-noite, você sabe se o Sérgio, Sérgio De Venardis já chegou?”, aí eu disse: “não, mas tem um táxi inclinando na porta”.
— Ha, ha. Que engraçado… - disse eu num misto dos sentimentos citados, acrescidos de um suspiro.
O balconista deu-me a chave na mão, era o 213; perguntei em qual quarto estavam as meninas.
— No 411, senhor.
— E esse telefone – apontei para um aparelho em cima do balcão de mármore – faz ligação pra lá?
— Faz sim, é só discar o número do quarto direto.
Bem, a minha canhestreza com aparelhos impediu-me de conseguir completar a ligação na primeira tentativa; mas houve sucesso na segunda.
— Ciao, buona sera! – disse ao atenderem.
— Ciao, ecco; sei arrivato finalmente.
Era Juliana. Combinei de deixar as malas no meu quarto e subir para cumprimentá-las. Quando repus o fone no gancho, minhas malas não estavam mais ao meu lado, girei a cabeça descompassadamente várias vezes até ver que estavam na mão do funcionário do hotel que me esperava na porta do elevador.
O que esperar dum hotel? Certo que não é a nossa casa; mas quase todos tem mania de carpete dentro do elevador, o pior é que o fluxo de gente em pouco tempo encarde o carpete e o do piso do elevador parecia o pêlo dum poodle imundo.
— Eh, os hotéis aqui parecem bem melhores que os de São Paulo. – comentei girando a cabeça e já vendo os botões gastos e friso solto na parte de baixo.
— … ah é, he, he! – fez o atendente usando das suas prerrogativas fáticas.
O elevador com grande estrépito parou-se no segundo andar; o rapaz foi na minha frente e abriu o quarto acendendo a luz.
— É aqui. Se precisar de algo, é só discar 9 que cai no balcão, lá embaixo na recepção.
O quarto tinha aquele cheiro característico de coisa antiga, talvez pelo carpete, ainda mais de hotel, ninho de ácaros. Apesar de eu ressaltar esses detalhes, é coisa com a qual me divirto observando.
— Po’ deixa’. Se precisa’ eu telefono.
— Boa-noite.
— Bem, eu vou com você, pois vou passar para conversar com os meus colegas. – usei de tom acadêmico, vai saber o que se passa na cabeça de um funcionário de hotel.
Entramos novamente no elevador, subimos até o quarto e último andar, eu saltei e o rapaz desceu. Hotéis assustam um pouco, principalmente quando você desce no quarto andar que está imerso nas trevas e no seu primeiro movimento fora do elevador, a luz acende. Malditos detectores de movimento. Depois da epopéia do elevador, eis-me à porta do quarto. Bati levemente. Alguns segundos depois e, nada. «Será que é isso mesmo», pensei e olhei para o acrílico afixado na porta, o número batia, mas, nada. Pensei em ir embora, mas senti o rumor de televisão, bati mais forte. Agora sim, veio um «sim?» do outro lado da porta. Era Juliana.
Cumprimentei a todas e as enfastiei com as narrativas do vôo e da turbulência, inclusos os detalhes musicais. Me sentindo mais estúpido do que costume, despedi-me e saí. «A domani.» E no corredor, somente eu e a escuridão, que foi embora no mezanino do andar, quando se ativou a lâmpada.
Eu estava realmente mal, o vôo, o desespero com relação ao dia seguinte, mas eu disse «não!» e peguei o elevador de volta para o segundo andar e desci assoviando o Glória de Glinka. No quarto, o ambiente me pareceu mórbido: duas camas de solteiro, um janelão, um abajur bem mequetrefe. Liguei o televisor e me pus a desfazer a mala, a pôr as roupas no armário para que não amassassem. Liguei o aparelho, para poder ouvi-lo, pois sozinho começo a ficar paranóico; era mais de meia-noite e meia. Tomei um banho e, ao final, puxei da mala os livros que trouxera comigo e o texto que eu havia composto, e comecei a fazer alguns acertos, sentado na cama.
Lembrei-me de acordar cedo no dia seguinte, e para tanto eu colocaria o despertador… mas, onde está o despertador? Eu lembrava de o ter pego, mas agora ele não estava na mala, e eu precisava acordar cedo no dia seguinte. Talvez o hotel fosse como o de Prudente onde eu ficara, a própria central telefônica podia ser programada para fazer o telefone do quarto tocar; mas no painel impresso do telefone, com os números essenciais, não constava nada. Tive de ligar para a portaria e indaguei como poderia fazer; a pessoa que me atendeu disse que eles mesmos que avisavam.
— A que horas o senhor quer que o chamem?
— Cinco e meia… ou melhor, seis.
— 213, né?
— Isso.
— Então até amanhã, às 6.
— Até e ’brigado.
— Nada.
Sentia a minha voz tonta ecoando pelo quarto; voltei para os papéis e para as anotações. De improviso, senti uma vozinha.
¿Como consegues estudiar y veer televisión al mismo tiempo?
Estava tão atordoado que respondi sem perceber.
— Assim, ó.
Quase longo meio minuto depois, levantei a cara dos papéis e lembrei de que não havia ninguém dentro do quarto. Olhei em volta e fui ainda à janela: nada o estacionamento estava vazio e a noite estava pesada sobre o horizonte.
— Que coisa. E posso jurar que ainda foi em espanhol… - murmurei da janela.
¿Que tienes, hombre? ¿No me vés? Estoy acá.
— Merda! ’Tá í, onde e quem? – virei-me já mortificado.
¡Acá!
O som saía do travesseiro. Comecei a aproximar-me.
És próprio lo que piensas, soy yo.
Efetivamente vinha da almofada.
— Puxa, e eu nem bebi – resmunguei – e me parece escutar a almofada falando!
¡Eh! ¡Buenos días! Finalmente comprehendestes!
Voltei para a janela.
— Impossível! Almofadas não falam! – gritei para o travesseiro.
En primer lugar: no grite conmigo, aún no fomos apresentados; en segundo lugar, no soy una ‘almofada’, soy un ‘travesseiro’. ¡E no me mires así, hombre! Parece que nunca vío ningún hablando…
— Mas alfofadas não falam! – rebati.
Mira; los políticos tambiém no deberían hablar, pero hablan… no se porqué éste espanto tán grande tuyo…
— Bem, as almofadas da minha casa não falam…
¡Fuf! Tu casa debe ser un ‘porre’. Nunca oíste aquella música de Juán Manuel Serrat? “Tenía una casa sombría, que madre vistió de ternura, y una almohada que hablaba y sabía de mi ambición de ser cura.”
A almofada cantava.
— ‘Tá, ‘tá bom; mas porque você fala em espanhol?
Soy argentina.
— Mas esse sotaque é peninsular! Cazzo de almofada madrilenha!
Oiga, imbécile: primero, estás mucho nervioso por causa del viaje, por causa del congreso…
— Putz! Mas como você sabe disso?! – espantei-me ainda mais.
Oiga, dígame una cosa, ¿que tienes en la cabeza? ¿Cebollas? Déjame concluír: exceptos todos estes factores, estás cansado, precisas dormir; después, hablo español porque soy una creación de tu cabeza acebollada, hablo por tu consciencia e hablo con pronúncia europea y este vocabulário deficiente porque hablo con TUS conocimientos de lengua española; en suma, somos la misma persona.
Nisso a almofada se lançou contra o meu rosto, e com o baque acordei caído no chão. Eu dormira, tombara sobre as folhas e caíra da cama. Levantei rápido e assustado. Eram quase duas horas; o melhor a fazer era dormir oficialmente, pondo-me sob o cobertor. E foi o que fiz.

Veja ainda
Diários de viagem (II)
Diários de viagem (I)

domingo, junho 12

Uma história dentre cem outras

«Mas você nem tentou!», falava a minha amiga ao volante enquanto eu mastigava alguns pensamentos amargos, cravado no banco traseiro.
«Não tenho traquejo prà coisa, è meglio lasciar perdere...», respondo.
«Mas e o telefonema? você não telefonou pra ela.».
«Não adianta, já não te disse qu’ela tem namorado...».
«Não, mas eu falo da prima dela...».
«Não adianta, deixa pra lá; mi sto bene così. Pra mim é difícil; talvez fosse mais fácil conquistar a Argentina com a minha espingarda de chumbinho.»

Veio-me tudo primeiro: as primeiras responsabilidades, os primeiros pesos insuportáveis, as primeiras tristezas abissais; mas ainda tinha alguma esperança. A idade entrou-me já pela segunda dezena, preocupações mais acentuadas, pensamentos mais profundos e reflexivos, terminei por fechar-me, mas me iludia ainda, alimentava esperanças como quem alimenta piolhos, esperanças que ficaram gordas e incômodas com o meu sangue.
Recentemente, a minha primeira gastrite tolheu-me as últimas esperanças. Com o estômago dolorido, tornei-me amargurado e cínico; uma personagem de cenário, um figurante bufão da vida dos outros, com uma voz ridícula e de aparência não muito convidativa. Quando trabalhava no banco, a música que mais me vinha à cabeça era o Vesti la giubba, de I Pagliacci, que fala justamente de fazer-se passar pelo o que não se é; eu atendia toda aquela gente, que visceralmente dava-me nojo, mas rindo, ridi, pagliaccio!, ou seria ridi, bancário!
Então não me venham com lições de moral, porque o dia dos Namorados é sim uma data absolutamente estúpida e comercial; cada um tem seus motivos para não gostar; e para mim, os meus são suficientes, não me deixo influenciar. Ano após ano, desilusões sobrepostas, desgostos emparelhados como peças de dominó caídas numa reação em cadeia; dias ensolarados mas sem cor; a existência me frige como a um ovo, e a vida escoa como a água que desce pela sarjeta na enxurrada.

* * *
Peço desculpas aos meus eventuais leitores, mas não pude deixar de vomitar a catilinária anual; e talvez seja esse mal-estar que me está a destruir o estômago. Sou mal-amado? Sou sim; e sou ainda extremamente chato, vocês não imaginam como, chato e cínico; infelizmente sou obrigado a sair de casa, caso contrário, ficaria jogado o dia todo na cama, esperando a morte.
Sei que não vos interessa um nada, mas digo o que será esse meu dia dos Namorados: outro domingo absolutamente tedioso, chafurdado nesse tempo estúpido de outono, acompanhado de um livro mais-que-chato, que deve ser lido para segunda e um dia passado todo em casa, num ambiente alienante, ao som de música depressiva (como De André ou Catherine Ribeiro).

* * *
A todos, um ótimo dia dos Namorados, mas se me mantenham ao largo! Respeitem-me ao menos nesse domingo.

sexta-feira, junho 10

Diários de viagem (II)

Profissão: taxista e biólogo

Ao pôr os pés sobre o chão, a quase 1.000 quilômetros de casa, tive a impressão de estar no espaço, pois jamais vira eu noite tão profunda, não havia estrelas e o aeroporto de Foz é literalmente no meio do nada, longe de locais de habitação, de onde vêm focos de luz; a abóbada celeste era um vazio negro e infinito, opressor.
A passos rápidos, ainda atordoado dos efeitos que me provocaram o vôo, abriguei-me da escuridão no prédio do aeroporto, onde deveria também pegar a minha mala. Mas como essas esteiras de bagagem dão tontura e fastídio, e ainda se deve ficar de olho fixo atrás das bolsas; bem a minha era uma só mala – pesadinha, diga-se de passagem – e então era mais fácil. De posse da supracitada e cambaleando pelo contrapeso causado, dirigi-me para a porta e direto para onde estavam os táxis. Joguei a mala no chão e fiz sinal.
O taxista resmungou e gesticulou, do carro, a uns bons cinco metros de mim. Franzi o rosto para lhes mostrar que não havia entendido. Limitou-se a resmungar mais alto e gesticular mais forte. Vendo que a comunicação entre nós tinha muito ruído, aproximei-me, talvez fosse argentino, visto que eu não o conseguia entendê-lo de súbito.
— ‘Cê já pego’ o tíquete? – grunhiu mais alto ainda o taxista.
— Tíquete? Que tíquete? – respondi com a minha mente repassando a imagem de um tíquete-refeição e lembrando que eu não tinha nenhum.
— ‘Cê tem que pega’ um tíquete no balcão dos táxis, aí dentro, do lado da porta.
Agradeci com a cabeça. No balcão, uma pequena fila e um atendente enfastiado e sonolento. Mirou-me:
— P’ra onde você vai?
— Boa-noite, atalhei. Eu vou prò… hum… esqueci o nome do hotel, me deixa consultar o voucher…
O balconista fez uma careta como dizendo: “turistas, eu detesto turistas”.
— Aqui… é na Marechal Deodoro! – disse apontando-lhe no voucher.
— Hum… - disse o balconista garatujando alguma coisa num papelucho do tamanho de um post-it e deu-mo. Era um tíquete de viagem a preço fixo.
Voltei para os táxis, agora sim, armado com o bendito tíquete. O taxista mímico de antes já havia partido, mas um outro, jovem, deveria regular de idade comigo, ou pouca coisa mais velho, meio gorducho e de cabelos na altura da nuca me fez sinal.
— Táxi?!
Caminhei em direção ao veículo, entrei, dei-lhe boa-noite-tudo-bem, e entreguei-lhe o papelzinho. O carro pôs-se a andar e pela rodovia, tomamos o caminho de foz, de 8 a 12 quilômetros de distância.
Pelo caminho, o primeiro comentário meu foi elogiar a qualidade do ar, “que quando se vem de São Paulo se nota a diferença”; o taxista ouvia e concordava, depois começou a fazer ele os elogios às qualidades do ar, com um jeito um pouco balbuciante e balofo e uma voz que soava como uma panela na qual se esteja cozinhando macarrão.
— Vê só o senhor…, o ar daqui é muito puro… he, he, é porque a gente não tem indústria… o povo cria boi, planta… tem as cataratas…, mas a cidade não tem nenhuma indústria praticamente…
Era a minha vez de ficar a concordar com “hum-hum”.
— Pois é. – continuou ele – Uma vez… eu levei um biólogo no táxi… e ‘cê ‘tá vendo ali aquelas árvores, por exemplo.
Eram uns coqueiros numa praça, já na entrada de Foz e portando, ao lume do poste.
— Sim, vejo.
— Então, esse biólogo…, que estava indo fazer… alguma-coisa no Paraguai…; se não me falha a memória… ele trabalhava prà… Eletrobrás, algo assim… ele me disse… o senhor consegue ver essas manchas brancas nas árvores… no tronco?
— Hum-hum, vejo sim. São uns fungos não é?
— Isso… o biólogo me disse que… esses fungos em árvore… só tem quando o ar é puro, quase cem-por-cento. Nas árvores dos lugares poluídos… não tem… Então…, esses fungos… são quase… hum… indicadores…, não sei se é bem essa a… a… palavra… indicadores… indicadores… de que o ar… da região é bom, né? Que o ar é puro.
— Ah! – atalhei – então quer dizer que essas manchas brancas, esses fungos, redondos e enrugados acabam funcionando como indicador da pureza do ar… nossa! que interessante!
— Pois é! – fez o taxista, com o rosto orgulhoso e radiante – Agora… se o senhor veio atrás de… ar puro; eu recomendo que ‘cê não vá prò Paraguai…
— É? – fiz curioso – E por quê?
— É que é o seguinte… aqui… e na Argentina também…, a gente até que é cuidadoso, agora … lá no Paraguai, eles jogam tudo… mas tudo mesmo o que você pude’ imagina’… é um baita dum lixão… aí, quando chove… e sai o sol em seguida, o senhor sabe, quando sobre aquele vapor… lá no Paraguai…, quando acontece isso, não dá pra respirar… é insuportável! O esgoto corre em aberto… e eles jogam tudo no chão…
— Bah, que nojo!
— Tanto que a gente chama lá de Ciudad de Lixo…
Depois da xenofobia higiênica, ainda conversamos um pouco sobre diferenças distintivas entre o sistema dos taxímetros de São Paulo, Foz e Curitiba, com análises comparativas.
De-repente, o carro entrou numa guia rebaixada.
— Pronto, – anunciou o taxista – chegamos, é aqui.
Desci do táxi, e quando já ia pôr a mão na maçaneta da porta de trás, onde havíamos alocado a minha mala e a minha bolsa à tiracolo, ouvi me chamarem e a voz, ou melhor, as vozes vinham do alto; e realmente, duma janela do quarto andar estavam todos os componentes do grupo, colegas e amigas (nessa ordem crescente) debruçados. Ergui os olhos ao céu e ei-las.Paguei o taxista e entrei no saguão do hotel; o Gloria all’Egitto ainda ecoava vagamente pela minha cabeça.

Leia ainda: Diários de viagem (I)

terça-feira, junho 7

Diários de viagem (I)

I – O vôo de ida – Epifanias e enjôos

Aeroporto de Cumbica, 21:30. Tendo chegado mais cedo – bem mais cedo, diga-se de passagem – e ter deixado uma considerável soma na mão do taxista, encontrava-me diante do portão de embarque; eu e a minha bolsa à tiracolo. Na verdade, o vôo em si não me preocupava, mas sim a comunicação a fazer no Congresso, na tarde do dia seguinte. Amuado e vestido à burocrata, entrei no microônibus que nos conduziu à avião; o vôo mesmo, somente sairia às dez e dez.
Devidamente acomodado, tomei posse da revista de bordo; nas últimas páginas, explicava-se que as aeronaves eram providas de canais de áudio, e olhando para o braço da minha poltrona, eis que surgem os comandinhos; o fone, subtraí-o do bolsão da poltrona ao lado. Conectei-o e fui passando pelos canais até parar no de música sinfônica.
Estava eu já dormitando, quando foi anunciado que o avião levantaria vôo; levantei a minha janela e ainda com o fone no ouvido, observava as manobras do avião para chegar à cabeceira da pista, deslizando como um grande automóvel. No canal de áudio tocava a Marcha Eslava de Tchaikovsky. O avião posicionou-se no final da cabeceira; e quando começou a tomar velocidade, começou junto o último movimento da Marcha Eslava; a velocidade foi aumentando e a intensidade da música e no segundo toque incidental do Deus Salve o Czar, o avião elevava-se levemente do solo e começava a prender altitude, e pela janela, uma colcha de retalhos luminosa se desvelava; foi realmente uma sensação indescritível, auxiliada principalmente pela trilha sonora.
Mas nem tudo são flores. Quase uma vintena de minutos depois, começou o serviço de bordo, sanduíches de peito de peru e uma meia-dúzia de bebidas a escolher. Eu já havia jantado, mas um sanduíche não era, de maneira alguma, uma má pedida; o carrinho e as aeromoças estavam já na poltrona seguinte a minha, eu era o próximo; quando recolheram o carrinho correndo. O alto-falante anunciou: «srs. Passageiros, nossa aeronave entrará num trecho de instabilidade, pedimos que se mantenham nas suas poltronas e apertem seus cintos». E daí? Turbulência não mata ninguém; mas de-repente, o avião chacoalhava de tal maneira, que parecia que alguém o agitava por fora. No canal de áudio tocava a abertura de Tannhäuser, de Wagner; o avião se agitava e o meu estômago ia e vinha, tanto que eu já estava com o saquinho para emergências – bendito saquinho – na mão. Quinze minutos de convulsões do avião e eu já com o saquinho aberto, não iria resistir, mas a fúria do ar aplacou-se.
Apesar de ter ficado com medo, certamente estava com o semblante totalmente decomposto, pois a argentina que estava ao meu lado perguntou, num português titubeante se estava tudo bem. Respondi que sim, com um sorriso mais-que-amarelo (plus-quam-fulvum).
Mais alguns instantes, o serviço de bordo voltou. A aeromoça toda sorriso, para mim:
— O senhor quer um sanduíche?
Olhei para ela e fiz que não com a cabeça. Ela me mirou mais alguns instantes.
— E um sal-de-frutas?
— Se tiver… por favor. – não me fiz de rogado.
Não é recomendável ouvir Wagner quando o avião estiver sob turbulência.
A partir de então, o avião voou como uma faca que desliza pela manteiga quente, suavilíssimo. Quando anunciaram que Foz já estava abaixo e o avião começaria os procedimentos de decida, começou a tocar no canal de áudio o Gloria all’Egitto, coro triunfal da ópera Aída e terminou exatamente quando o avião estacionou totalmente no solo. A descida ao som de Aída também foi marcante, justamente pela sonoridade do coro: …gloria all’Egitto, gloria!
Interpretei aquilo como bons augúrios: «Ah, vai dar tudo certo!» pensava comigo enquanto aguardava que o corredor do avião estivesse transitável, e ainda enjoado, exultante e emocionadíssimo pelos efeitos da música, a minha vontade quando descia a escada e punha novamente os pés no chão, era de chorar e beijar desesperadamente o solo.
Afinal, era um derradeiro rincão da Pátria; e lembrei-me também da Guerra do Paraguai; e ainda todo o vórtice de lembranças, medos, angústias e alegrias, que por pouco não me deixaram louco naquele instante. Talvez se tivesse tocado o final da Abertura 1812, ao invés de Aída, eu teria sido levado do aeroporto de Foz para um hospício.

segunda-feira, junho 6

Erratum, curiosidades e generalidades

(necessariamente nessa ordem)

Erratum (que engloba a curiosidade)
O carro iugoslavo não é Zastevo, mas sim, Zastava (algumas fotos de miniaturas estúpidas). Algo mais consistente na Wikipédia.

Generalidades
Voltei de Foz do Iguaçu, do Congresso de Italianística (que resultó admirable); estive na Argentina, pus o espanhol em práctica e não fui devorado pelas cobras e onças do Parque Nacional Iguazú. As placas eram incisivas: Mantengase en el sendero, podrán encontrarse animales perigosos. Ou então No alimente a los couatíes; no arroje restos en el parque. Também é proibido alimentar o funcionário da Dirección de Migración, mas não havia placa alguma.
Agora estou envolvido com as provas e com os exames, não poderei aprofundar-me muito, mas vos prometo alguns passagens interessantes. Fora as cataratas que son un espectáculo por si.

quarta-feira, junho 1

Inverno

— Opsânitza! Levante-se, já passam das nove!
Opsânitza abriu os olhos; era sábado. Todo dizer entrava na sua cabeça e ecoava, sentia que nada lhe ficara, somente um certo amargor, rancores, lodo cerebral.
— Nove…? nove? – ficou olhando para o teto.
— Vamos; tem de limpar a neve da porta, senão o Mihai não consegue entrar com a Zastevo (1); vamos, eu te dou uma mão. Ou vai esperar que o marechal (2) venha nos ajudar?
Sentou-se na cama e coçou os olhos avermelhados.
— Recomendo que ponha uma roupa mais pesada – recomendou Martinovic –, pois vai frio.
Trocou-se e pegou a pá, seguindo Martinovic. Estava angustiado, agora era o peso das obrigações contraídas com a sociedade.
— Então, - disse Martinovic, enquanto enfiava a pá na neve, e praticamente não se via o seu rosto – e o teu trabalho de Contabilidade, já terminou?
— Que?
— O trabalho que você disse que tinha de terminar…
— Ah… Martinovic, você não é a minha mãe, pois se fosse, já tinha mandado ir se ferrar… ou dado um golpe de pá.
— Opa, não está mais aqui quem falou… mas epa!, onde você está indo? Opsânitza, volta aqui, meu!
Yuri Opsânitza, pôs a pá às costas e começou a afastar-se pela rua. Algumas quadras depois, quase fora do perímetro urbano, achou um paquímetro.
— Estúpido! - rugiu. E com um só golpe lançou-o da calçada para o meio da rua, aspergindo moedas de um dinar pela neve. Ninguém viu, a rua estava deserta. Continuou andando como se nada houvesse ocorrido, logo estava na trilha do bosque; sentia o coração oprimido; parou e sentou-se na base de um grande olmeiro (3). Mesmo com as pesadas luvas, tirou da algibeira do sobretudo um lápis tosco e um surrado caderno de anotações com a efígie do Marechal Tito (4), monocromática em azul, como nos selos de quinze dinares (5).
— Idiota. Como tudo e todos nesse país. Todos idiotas, do Marechal às árvores, passando pelos sérvios, croatas e eslovenos e o diabo-a-quatro que tenha nesse país pestífero; o mundo é pestífero! – Levantou-se e deu uma pazada no olmeiro, que de sua petricidade centenária nem se moveu, porém o baque fez Opsânitza estremecer. Recuperado do tremor da pancada, recolheu o lápis e a caderneta que lhe haviam caído longe e sentou-se novamente. Começou a redigir.

«28 de dezembro.

O gosto do dente, a Coluna da Glória, Glória cantado nas igrejas, Tchaikovskij, o lago dos Cisnes, os cisnes sujos, o Horto de Zagreb, o Parque do Danúbio. O homem que vive de recordos, que vive de ilusões, gordas e sebosas como porcos confundidos com cavalos, o seu pêlo seboso refulge como a vitória; os louros que não existem como eu os queria, mas que somente dão gosto à sopa, sopa que dá mau hálito e gases, coisas que os manuais de etiqueta não recomendam – maldito Galateo, «stomachevole» - é a vida que patina na lama da água, há séculos estagnada, a era do paludismo; somos todos animais de brejo: mosquitos, larvas, moscas, vermes, minhocas e sanguessugas. Maus tempos vão.
-
Ontem foi o meu seminário de Contabilidade Aplicada. Ontem eu tomei café de máquina no fim da rampa da Faculdade, a 25 para (6). Ontem, o carro de som, «voluntário e popular» continuava a anunciar os louvores do povo iugoslavo a Tito (ou a algum outro General) como se anunciasse o Juízo Final. E talvez seja o Juízo Final. Talvez o Juízo já tenha ido; o meu eu tenho certeza que já foi há muito, somente quem não tem juízo (no sentido normativo, didáctico, prescritivo, eclesiástico e canônico) consegue pensar; mas como sou novo e medíocre no mestiere, cada sinapse interligada é uma nova dor, uma nova dura consciência, com suas implicações tristonhas e malvadas.
Queria ficar quieto, eu e meu travesseiro, meu mundo onírico, eu e meus lençóis trasmutados em rios, planícies verdes, cidadezinhas pequenas; sem peso, sem dor, sem angústias estúpidas. Ontem, reergui os olhos do chão, dei de cara com o viaduto Mladenic. Mundos que se sobrepõe, e que obra de arte aquelas vigas, cujos detalhes transformados em ângulos losangos, acompanham tanto o traçado da rua Novi Sad quanto a do próprio viaduto que sustêm.
Como é assutadora a beleza de certas moças que têm cabelos dispostos como se estivessem num quadro, que cada movimento seu é uma ode ao belo. Como é trêmula a mão de Marija Hakumovic quando está sob seminário; como esclarecem as sobrancelhas arquejantes do sábio mestre, por de trás das grossas lentes. Como o sono é uma instituição humana e universal, assim como a loucura, o amor e o ódio. Como são odiosos os da Juventude Comunista.
Mas que diabo de mundo. Cansou-me a linearidade do tempo e dos fatos narrados num diário como se estivessem no jornal ou no Diário Oficial; colho o que me interessa, escolho as sensações como quem colhe limões aleatoriamente. Chega de narrações burocráticas, lineares, unidirecionais e comezinhas. Limpem-se com os relatórios, forrem os tetos com notas fiscais, façam papel-machê com os títulos das companhias estatais, não ligo; toquem guzla na fila do hospital; não ligo, tudo se rege pelo tempo, dou-me o direito de parecer atemporal.»

Opsânitza parou e olhou as páginas garatujadas; adiante, viu a pá afundada na neve e com um grito, pegou-a, sovou a neve em volta centenas de vezes, quando se cansou, com as veias do pescoço quase saltando, jogou a pá no barranco próximo.

Notas

(1) marca de automóvel de algum país do Leste Europeu, não sei exatamente nem de qual país é, nem que tipo de carro é (se sedan ou wagon); lembro-me de ter visto o nome numa fotografia de uma carroça de ciganos, e na madeira carcomida, um logotipo de automóvel, é era a Zastevo. Usa-se aqui no sentido de van.
(2) Tito?
(3) Não, nunca vi um olmeiro e nem sei se há deles na Iugoslávia, sei que são do hemisfério norte.
(4) Sim, é o Tito.
(5) Quinze? Talvez fosse no de vinte.
(6) para é a centésima parte do dinar.