domingo, fevereiro 26

269. A Consciência


Por Joan Manuel Serrat.
(Tradução dedicada à Camila)

No-la endossam desde a infância
É partidista e desproporcionada.
Complemento do pecado
e do remordimento,
não nos deixa dormir em paz e nos tira a vontade.

Nos amolda a um roteiro convencional
onde quase nunca somos protagonistas.
A consciência, senhores,
nos faz esconder nos sótãos
o que deveria estar na vitrina.

Nos seria suficiente o respeito, a sinceridade
e um pouquinho de benevolência.
Porém, nos penduram, sem alguma necessidade,
o peso da consciência.

É de todo anticonstitucional.
Fomenta a mentira e aliena.
Não nos deixa mover
com espontaneidade.
A quintacolunista do sistema.

Leva-me pelo caminho das pedras.
Não pode deixar-se estar, de passar fatura
nem de beliscar-me os dedos
quando estamos a trocar figurinhas
que a mim me faltam e tu tens repetidas.

Nos seria suficiente o respeito, a sinceridade…

De fora mandam leis e regulamentos
e de dentro ela completa a bronca.
Isso não pode ir bem.
Logo em seguida vê-se que
alguém quer fazer entrar a chave pelo lado errado.

E quem deve estar por trás de tudo isso?
Que nos confunde as necessidades e os vícios?
Libertemos os sentidos
e, como diz a polícia
investiguemos quem deles aproveita.

La consciència (1984)

Ens l’encolomen des de la infantesa.
És partidista i desproporcionada.
Complement del pecat
i del remordiment,
no ens deixa dormir en pau i ens treu la gana.

Ens emmotlla a un guió convencional
on gairebé mai som protagonistes.
La consciència, senyors,
ens fa amagar a les golfes
el que hauria d’estar a l’aparador.

N’hi hauria prou amb el respecte, la sinceritat
i una miqueta de benevolència.
Però ens pengen, sense cap necessitat,
la llufa de la consciència.

És del tot anticonstitucional.
Fomenta la mentida i aliena.
No ens deixa bellugar
amb espontaneïtat.
La quintacolumnista del sistema.

Em porta pel camí del pedregar.
No se’n pot estar, de passar factura
ni de picar-me els dits
quan estem canviant cromos
que a mi em falten i tu tens repetits.

N’hi hauria prou amb el respecte, la sinceritat
i una miqueta de benevolència.
Però ens pengen, sense cap necessitat,
la llufa de la consciència.

De fora manen lleis i reglaments
i de dins ella completa la «bronca».
Això no pot anar bé.
De seguida es veu que
algú vol fer entrar el clau per la cabota.

Què hi deu haver darrera tot això?
Qui ens confon les necessitats i els vicis?
Alliberem els sentits
i, com diu la policia,
investiguem els qui en treuen profit.

sábado, fevereiro 25

268. Sábado de carnaval

Prometo que passo a gostar de carnaval, quando qualquer uma das escolas de samba fizer um samba-enredo em homenagem ao compositor Mikhail Ippolitov-Ivanov, baseado nos Esboços Caucasianos, suíte n.º 2, Ivéria. Prometo que passa a ser a escola do meu coração.

À tarde, apelei para o já tradicional cochilo pós-almoço. Dificilmente sonho durante esses cochilos, mas hoje, tive uma seqüência de sonhos sem imagem, como se fosse uma emissora de rádio; e realmente eram peças publicitárias para rádio. Sei que foram várias, com jingles e tudo mais, mas só me lembro de uma com nitidez: Emburrar, chorar, berrar… por que tão poucos termos? No Grande Dicionário [não me lembra o nome] você encontra mais de 640 formas verbais para descrever o seu mau-humor com precisão. Compre já o seu Grande Dicionário [?]. Já nas livrarias. Nem nos sonhos tenho paz.

sexta-feira, fevereiro 24

267. Um trecho de uma biografia

D’A retalhada biografia do Vô Pepe, trabalho-em-andamento.

[...]
Porém, a inépcia escolar e a chuva não impediram que ele servisse o exército da Espanha republicana, um bom período de tropa, mas não sei bem exatamente quanto. Sei que o mandaram servir à pátria bem longe de casa: da sonolenta e verde Galiza, foi mandando para o Tânger, o Marrocos Espanhol. Fez a travessia do braço do Mediterrâneo entre Cádiz e Ceuta com diversos outros recrutas na mesma situação dele, desalojados da Espanha inteira e chutados para o Marrocos Espanhol, a ficar de guarda contra uns tuaregues que não entendiam o que era a Democracia e o federalismo republicano espanhol e muito menos a língua de Cervantes. Evitavam juntar muitos de uma só região, então, havia no máximo três ou quatro de cada uma, mas de cidades bem distantes: um outro galego, uns três viscaínos, um catalão, um andaluz, um valenciano; isso do grupo mais próximo, pois é impossível conhecer todos os companheiros de viagem de uma embarcação militar que tem mais de 500 passageiros e com a colaboração do ruído de motores e do próprio mar.

A certa altura da travessia, anunciaram – uns dizem que foi um companheiro de viagem, outros dizem que foi o capitão ou tenente pelo alto-falante da barcaça: «Homens! A estibordo… sim, a estibordo, há algumas léguas, está o nosso rochedo, a nossa coluna de Hércules, que pertence à Espanha, mas é usurpada pela pérfida Albion: Gibraltar, Espanha irridenta! ¡Viva España!». Acreditando que tenha sido o tenente-capitão, nesse momento, cessou o chiado dos alto-falantes e o ar marítimo não encontrou uma tropa, mas umas duas, três centenas de homens perplexos, interrogando-se em silêncio, sentados no tombadilho. Alguns levantaram de improviso e correram à murada direita, aos gritos de ¡Por España! e, puseram-se a dar sonoras e grossas escarradas no mar, como se estivessem a guardar aquele muco há semanas para aquele simples ato. Logo, se levantaram vários homens e logo todos estavam à beira da murada, escarrando no mar. Evidente que com o peso de trezentos, duzentos homens, a embarcação começou a inclinar perigosamente para o lado direito. Alguém avisou, ou berrou, ou foi o alto-falante: «Voltem! Pra trás! Pra trás!» Percebendo a inclinação do barco, alguns se precipitaram a voltar, outros, junto da murada, terminaram ganhando um banho-de-mar. Assim, o frenesi patriótico terminou com uns recrutas molhados, uns outros tantos prensados, umas pernas rotas e um soldado ranzinza que observou tudo sentado sobre um rolo de corda.
[...]

quinta-feira, fevereiro 23

266. Desafio

Bem, a cara Sem Cantigas desafiou-me com um jogo de imagens. Então, vejamos como me saio, fiz como pude (só não saberia dizer o que é o invulgar ao qual você se refere). Mantenho os títulos em inglês, tal-qual os encontrei.

1. The age you'll be on your next birthday:2. Your favourite colour:
3. Your middle name (considerado sobrenome/apelido):

4. The place you lost your virginity:
(«...mas mudemos de assunto, sim?»)

5. A bad habit of yours:
6. Your favourite fruit or vegetable:
7. Your favourite animal: 8. The town you live in:9. Your last name:
10. The one(s) you love:
(esse também está difícil)

Aí está tudo.

quarta-feira, fevereiro 22

265. Conselhos para pais

Escutado, traduzido e transcrito de Consejos para padres, dos Les Luthiers (áudio disponível nos emules da vida).

Agora… recebemos um tema que é motivo de muitas consultas, por parte das mães… os pais; digo, e os pais: as perguntas das crianças. Principalmente aquelas um pouco delicadas, por exemplo, a famosa «como nascem os bebês».

Às crianças sempre se deve dizer a verdade; e evidentemente algumas vezes elas podem não entender. Então, há maneiras mais pedagógicas de explicar, pode-se dizer, por exemplo «Vê, fulaninho, como mamã e papá se querem muito, papá presenteou-a com uma sementinha, e essa sementinha germinou, cresceu e depois de nove meses se transformou num formoso repolho onde te deixou a cegonha que te trouxe de Paris».

Às crianças sempre deve se dizer a verdade. Às crianças, não se deve assustá-las com monstros ogros e temíveis personagens imaginários… é melhor lançar mão de coisas mais reais: o lobo, uma aranha, uma boa víbora… parece inacreditável que haja mães, hoje em dia, em pelo século deze… deze… vinte! que digam aos seus filhos coisas, como por exemplo: «Escuta, sicraninho! Se não tomar toda a sopa, chamo o homem-do-saco!». Lamentável…! E pode ser que tampouco o homem-do-saco queira tomar a sopa…

Às crianças sempre se deve dizer a verdade. Se deve explicar-lhes as coisas, para que entendam os motivos, as razões; e depois, às crianças, principalmente os menores, são seres pensantes, e logo podemos dizer que são seres humanos. E por isso se deve explicar-lhes as coisas com paciência, com carinho, por exemplo, o típico caso: «Beltraninho… já é meia-noite, querido, está um pouquinho tarde, e nós temos de acordar cedo, e você tem de acordar cedo… e amanhã temos de levantar cedo para trabalhar… entende o que te estou explicando?… quer dizer, querido, se agora você não for dormir… eu te arrebento…».

Às crianças sempre se deve dizer a verdade.

segunda-feira, fevereiro 20

264. Sono

(esse texto foi escrito há uns meses atrás, está sem revisão, mas combina muito com o dia de hoje)

Os relógios – três, eram três dentro do pequeno quarto, sincopando o estado dos ponteiros; três por segundo. Qualquer um ficaria louco, mas ele, ali, deitado na cama não. Tem um sono monolítico; quebraria uma barragem com ele; estava ali, imerso na escuridão da noite ainda não finda e nos tique-taques dos relógios, envolto fortemente nos cobertores, quando um dos mecanismos, o mais próximo, quase à cabeceira da cama tocou; o toque irritante dos despertadores electrônicos; rapidamente uma mão emergiu do escuro e acendeu o abajur, transbordando o quarto com uma luz estúpida e cegando por um segundo os olhos ligados à mão, e co-autores da façanha de ligar o interruptor.

Desanuviada a vista, desligou o despertador. Sentou-se à beira da cama e praguejou algo incompreensível; eram cinco e meia. Não que fosse excessivamente cedo, era simplesmente o horário de todo dia – útil, de fim-de-semana ele tinha o luxo de dar-se algumas horas a mais de sono. Era o horário de todo dia. Acostou-se à janela e percebeu, ainda tonteado pelo sono, que nos andares de baixo havia já movimento; largou da janela e de pijama – qual pijama? aquilo era só roupa velha – caminhou até o banheiro. Acendendo a lâmpada, deu de cara com o seu rosto cretino, relativamente inchado pela noite de sono, avermelhado, olhos também avermelhados. Examinando-se, soltou um grunhido ou talvez um gemido, nem ele mesmo sabe o que fez; chegou à conclusão que precisava de um banho, talvez para conseguir quebrar a pétrea rotina, que parecia todo dia imutável como o céu é azul. Ele geralmente tomava banho à noite, logo que chegava; morria de nojo do jornal que trazia todos os dias sob o braço, embora não conseguisse parar de comprá-lo, sujava as camisas. Com o tempo, as camisas ficavam acinzentadas sob o braço esquerdo.

Deixando a água fria cair sobre si, fazia as perguntas de todo-santo-dia: os malditos porquês que lhe infestavam a mente tal-qual uma casa velha tem baratas; mas hoje, particularmente hoje, estavam mais cheios de arestas; cortavam, eram dolorosos – baratas niqueladas!

Enxugou-se de má-vontade e o sono quase o fez estatelar-se contra o cesto de roupa suja. Dez para seis, devidamente vestido – calça, camisa, sapato, gravata – aproximou-se do fogão para aquecer o leite e lançou um olhar ao horizonte que se lhe abria amplo diante da janela – afinal, essa pocilga tem de ter alguma vantagem. O sol ainda não tingia de azul-claro o horizonte; certamente estava nublado e o dia seria uma geladeira. No andar de baixo, a vizinha já se esganiçava com as crianças e deixava cair diversas panelas entre berros absurdos. Ele sempre se aborrecia com aquele festival, todo-dia pela manhã era a mesma coisa; atribuía o escândalo e a falta de educação à origem regional diversa, eram migrantes. Sentou-se à mesa, o relógio de parede da cozinha – o quarto – marcava seis cheias. Nada do dia clarear; certamente estava muito nublado. Do andar de baixo, a mulher das panelas – ele nem sabia seu nome – gritava com o marido, arrancando-o da cama aos berros; só se entendia a palavra janela, ela queria que ele visse algo pela janela; tomava altura a sua voz irritante de eunuco, pois certamente ele pusera a cabeça para fora – gente desclassificada.

Pesava, de xícara na mão, como pudera ter se enfiado num pombal tão infecto: vizinhos barulhentos e espalhafatosos, longe de tudo. E todo dia a mesma maratona, caminhar até o metrô – afinal, ele não tinha paciência de dividir espaço no bonde com aquelas pessoas – baldeações, um emprego revoltante e as lembranças amargavam-lhe a boca; os mesmos vícios, as mesmas grosserias, parecia que os incidentes no metrô o perseguiam; hoje alguém passava mal no vagão e era necessário que o serviço de segurança viesse prestar os primeiros-socorros e se formava aquela roda de gente, ele sempre teve um profundo nojo por essa fixação mórbida que a grei tinha por desgraças e similares; ou às vezes, dois boçais que se haviam esbarrado por acidente começam a pegar-se na plataforma, necessitando também da intervenção da ordem constituída, não tão afavelmente. As mesmas decepções, anos seguidos, as mesmas rejeições, sentia-se simplesmente um pedaço de madeira, na melhor das hipóteses um autômato. O tempo tolheu-lhe as reações: antes indignava-se, ficava nervoso, batia os pés contra o chão; agora não, um torpor envolveu-lhe os dias, fica somente pensativo, com a cabeça apoiada nas mãos, a xícara de leite, como se contasse os azulejos da cozinha, enquanto sua mente lhe apresenta as velhas imagens, as velhas e amargas lembranças.

Nesse devaneio figadal imergiu-se, e de improviso despertou de sopetão com gritos. Levantou-se abruptamente e derrubou a cadeira com o impulso. Que era aquilo? Parece que os vizinhos saíram todos ao quintal do prédio e conversavam exaltadíssimos; ouvia-se a palavra Deus repetida com uma insistência irritante. Mas o que queria aquela gente? Ainda estava escuro e eram… eram dez para as oito! Cochilara. Mas não era possível que fossem dez para as oito. Estava noite ainda! Pôs a cabeça pela janela do quarto; todos os inquilinos estavam no pátio, pareciam assustadíssimos. Ele mesmo foi preso pela sensação de que algo estranho estava acontecendo, embora pouco se importasse com a reação da vizinhança. Os vizinhos o viram pela janela; encabulado pelos olhares, inventou uma desculpa: «o meu relógio atrasou, será que vocês têm horas?». «Nhor-não; atrasou não, são quase oito horas mesmo…». «Como são quase oito horas?! Vocês enlouqueceram? É noite! Na melhor das hipóteses são oito da noite, e aí seria bom, pois eu poderia dormir…». O velho de roupão, do pátio continuava, gesticulando: «Não, não! O sol não nasceu!». «Vão dormir, vocês todos precisam dormir! Isso só pode ser histeria colectiva!». Fechou a janela. Mas, de fato, eram oito em ponto e, tecnicamente ele estava atrasado. Começou a ouvir gritos esparsos, de longe. O sol não nascera: era verdade, verdade efetiva e palpável. No instante dessa constatação, bateram à porta; e quem seria no meio do caos? Abriu a porta: era a carola do primeiro andar, de véu e paramentada com escapulários, crucifixos e empunhado uma cruz de marfim. Berrava: «Seu Lopes! Acabou! É o fim! Vamos, estamos de vigília no saguão do prédio!». Ele mediu a velhinha assustada de cima a baixo. «Reze por mim, eu não posso!» e fechou a porta. A velhinha ainda insistiu e berrou umas três ou quatro vezes, mas desistiu berrando que Deus tivesse piedade da sua alma malvada e desceu para juntar-se à vigília e encomendar a sua própria alma a Deus.

A primeira reação dele foi uma ameaça de pânico: santo Deus! Talvez fosse o fim do mundo correu instintivamente até a geladeira – talvez se comesse, sobrevivesse ao cataclismo – parou diante do aparelho. Mesmo se o mundo não acabasse, ficaria tudo às escuras, logo a temperatura cairia a níveis mais-que-siberianos e seríamos dizimados pelo frio e pela fome. Apoiou-se na geladeira para não perder o equilíbrio. De fora, ave-marias e pais-nossos ecoavam de todo o canto, como se o mundo tivesse se convertido num templo imenso; aquelas velhas desdentadas comendo seus terços. Era o caos, simplesmente o caos estava ali, inexorável, entrando sem bater e deitando no sofá com os sapatos sujos. Ele sentou-se no sofá. A idéia do caos o perseguia, o caos, o caos, as pessoas correndo e trombando-se umas contra as outras pela rua; os profetas do Apocalipse provavelmente estariam exultantes, fazendo tilintar suas sinetas: eu disse, eu disse. O metrô certamente estava parado e seria o caos chegar no trabalho… mas que trabalho? E tudo se tornou claríssimo na sua mente, tanto que mesmo com os rumores incessantes do mundo externo, despiu-se, vestiu o pijama – qual pijama, homem-de-deus? – e voltou para a cama; adormecendo profundamente.

sábado, fevereiro 18

263. Espanha de charanga e pandeiro


Joan Manuel Serrat tem um disco, dos seus primeiros, chamado Dedicado a Antonio Machado (1969); Serrat em linhas gerais é todo bom, não há nada desprezível em sua longa discografia, mas esse disco destaca-se entre todos, tanto pela música quanto pelas letras, e, como o nome indica, é dedicado a Antonio Machado que algum tempo depois, descobri ser um poeta andaluz. Deixei de lado tal informação, tanto em conteúdo quanto em importância, até que nessa última semana, quando lia os Cadernos de Lanzarote II, de José Saramago, dou de cara com citações sobre Machado, que acabaram por reacender a minha curiosidade. Sempre preferi a prosa à poesia; certo que me aprazia também a poesia: Drummond, Bandeira, Leopardi, mas nunca tinha conseguido escolher um por predileto.

Tamanha curiosidade, que me abreviei o máximo que pude o almoço de ontem e pus-me à biblioteca da Faculdade de Letras, a garimpar algo; evidente que o famoso sistema de busca electrônica de livros da Universidade pouco ajudou – sempre o achei excessivamente falho – e fui obrigado a procurar algo do jeito de mais gosto: garimpando nas estantes; como já sabia onde ficavam as partes de literatura espanhola, lá fui e comecei a procurar; primeiro apareceram uns livros de crítica e uns trabalhos sobre poeta, e eis que, desvela-se numa prateleira escura e poeirenta toda a obra completa de Antonio Machado. Puxei um volumezinho compacto, encadernado em verde, impresso en los talleres de Printer industria gráfica, sa de Sant Vicenç dels Horts, el día 25 del mes de Noviembre de 1982. Uma leve folheada já me foi suficiente para identificar várias das letras contidas no disco de Serrat, como o profético Proverbios y cantares, LIII:

Ya hay un español que quiere
vivir y a vivir empieza,
entre una España que muere
y otra España que bosteza.
Españolito que vienes
al mundo te guarde Dios.
Una de las dos Españas
ha de helarte el corazón.

Ou o começo de El mañana efímero, presente tanto em Serrat, na última faixa, - onde se mescla com a Parábolas, III – ou em Poema de emerxencia para Antonio Machado, de Xerardo Moscoso onde também é recordado, em galego:

A terra da charanga e dos pandeiros […]

Que vem de:

La España de charanga e pandereta,
cerrado y sacristía,
devota de Frascuelo y de María,
de espíritu burlón y de alma quieta,
ha de tener su mármol y su día,
su infalible mañana y su poeta.
[…]

E a Parábolas, III:

Érase de un marinero
que hizo un jardín junto al mar,
y se metió a jardinero.
Estaba el jardín en flor,
y el jardinero se fué
por esos mares de Díos.

Por ora, os meus conhecimentos sobre o poeta andaluz resume-se a umas poucas leituras, as quais pretendo aprofundar, e me parece muito válido conhecê-lo. E a poesia conjugada com música, já se sabe o ótimo resultado que dá.

terça-feira, fevereiro 14

262. Tio Anacleto


Em verdade, era tio-avô, mas ninguém chama tio-avô pelo título de parentesco devido, acaba virando tio tão-somente e ele faz-se distinto dos tios irmãos de pai e mãe pela idade mais avançada e pelos cabelos brancos. Tio Anacleto era meu tio-avô, tio do meu pai, irmão do meu falecido avô; hoje também tio Anacleto faz parte do grande clube dos que se foram.
Em vida, era uma personalidade assaz controversa, trabalhara como carcereiro na Polícia Civil durante os Anos de Chumbo; que histórias não teria para contar. Talvez lhe impusessem o silêncio, talvez torturasse os presos também, do que não duvido, pois quando excedia a cota na bebida, tornava-se violento. «Violento», diziam as mulheres da família; na verdade, segundo algumas outras testemunhas, nas maiores exaltações etílicas, punha-se a berrar uns palavrões e quebrar uns copos, coisas de bêbado. Não me parece que tenha socado a esposa ou espancado algum dos filhos.
Depois que se aposentou da Polícia, dedicou-se profissionalmente àquilo que tinha como passatempo: a eletricidade; tornou-se um eletricista autodidacta e de mão-cheia, talentoso realmente. Calculava resistências e metragens de fios sem o mínimo esforço e conseguia fazer com que você visualizasse todo um circuito pronto sem a mínima necessidade de papel. Disjuntores, fios, lâmpadas, fusíveis, literalmente faziam sentido quando citados pela sua voz rouca e pausada. Gostava tanto da eletricidade que quando ia testar a voltagem dos fios, nunca usava daquelas lampadinhas que usamos nós – que se acende fraco é 110 volts e se forte 220 -, simplesmente molhava os dedos com saliva e os punha nas partes desencapadas dos fios e assim revelava a voltagem à petrificada assistência, caso houvesse.
Quando meu pai construiu a casa onde moramos, ele propôs-se a realizar a parte elétrica; e fê-lo com tal primazia, que nunca, em mais de vinte anos, tivemos um único aparelho queimado pela voltagem e nas poucas vezes que a rede elétrica teve alguma oscilação perigosa, os disjuntores estalaram, livrando tudo do perigo. Nunca se queimou um único fusível.
Trabalhava com a sua paixão sempre levemente embriagado, mas com os anos, tornou-se um bêbado amável e deixou de lado os arroubos que o caracterizaram; estava sempre levemente avermelhando e cheirando a aguardente, com a barba branca a despontar-lhe pela cara como se fossem os espinhos de um cacto. Acrescente-se ainda o inseparável cigarro no canto da boca, Continental – como me parece que era o único cigarro que existia antes da Abertura Econômica, pois quase todos o fumavam. «Não sei como não explode!» ouvi minha mãe comentando certa vez, «bebe feito uma esponja». Tio Anacleto não morreu explodido e muito menos eletrocutado – como previram certas línguas ferinas – e nem o tão preconizado tombo, visto que ele ia fazer as instalações elétricas e eventualmente para tal, trafegava por calhas, telhados e beirais, mas morreu agonizando, preso a uma cama, dominado por um câncer pulmonar que se alastrara pela coluna vertebral.

Nota à postagem 260
Um erro de tradução acabou por trazer um novo conceito, uma nova categoria. La noia que s'ha posat a ballar do Serrat, traduzi o título da música erroneamente, acabei por ser induzido pelo italiano, idioma no qual noia quer dizer tédio, fastio. Então, o enfado que se pôs a bailar, o enfado dançante passa a ser um conceito puramente venardiano, se é que posso adjetivar-me desse modo. Noia em catalão significa criança pequena, mocinha impúbere, ou mocinha púbere que inda mantém sua virgindade, segundo o excelso Dicionário do Instituto de Estudos Catalães.

sábado, fevereiro 11

261. Compras


Voltas em lojas e supermercados confesso que é uma actividade que não pertence às minhas habituais e muito menos às minhas preferidas, ainda mais com o tempo chuvoso de hoje. O transtorno das poças que se formam, abissais, nas calçadas e as varetas quebradas dos guarda-chuvas.
Não obstante a chuva, hoje foi o dia de adquirir uma geladeira, em substituição à nossa velhinha, azul-celeste de fábrica, com 26 anos de serviços prestados a uma família que ela viu formar-se e crescer; mas paremos por aqui, pois sentimentalismo para com electrodomésticos não é absolutamente o que sinto e muito menos o que quero passar.
A busca ao novo modelo em si durou pouco. Com uma pesquisa anteriormente realizada, já sabíamos onde seria comprada a bendita da geladeira. Mas fui às compras com duas mulheres, minha egrégia genitora e minha caríssima irmã, ou seja, um giro panorâmico pelo shopping seria inevitável: duas horas olhando com enfado vitrinas uma depois da outra, andando por inércia. A um momento, passamos diante de uma loja de bolsas e umas malas chamaram-me o olhar, por serem aparentemente fortes e a bom preço. Viajo pouco, mas uma mala daquelas sempre faz falta.
— Olha, mãe... que mala boa!
— Hum... é, pois bem, parece grande, não...
— Sim, sim... cabe tudo aí dentro... até o Cristo.
A menção ao Cristo foi absolutamente acidental.
— O Cristo...? - voltou-se a minha mãe.
— Sim, sim... mas picado, certamente...
Depois disso, demos de ir ao supermercado e correndo a vista pelas gôndolas, dou de cara com uns bonecos, daqueles que se dão aos infantes, de borracha, dentro da sua embalagem que consiste num cartão grande e um plástico mais forte que envolve o cartão e tem uma «bolha» no formato do boneco. O formato dos bonecos chamou a minha atenção, havia algo de estranho. E realmente havia. Os bonecos todos eram de uma série chamada O Exército de Deus (em letras garrafais como se fosse o nome dum desenho animado) e havia reproduções à moda de desenho animado de personagens bíblicos: Davi e Golias (nota bene, na mesma embalagem), Adão e Eva (com umas horríveis folhas de parreira sobre a genitália que estão mais para folhas de câmanho e a Eva ainda conta com um adicional não previsto nas Escrituras, uma espécie de soutien, para que se mantenha o decoro entre a petizada evangélica) e finalmente, Noé, acompanhado duma pequena arca também em borracha, mas desproporcional ao tamanho do boneco. Juro que saí do mercado um pouco aturdido.
E para finalizar a jornada de alvissareiros acontecimentos, apesar de já termos comprado a nova geladeira, olhávamos por curiosidade algumas outras expostas no mercado, umas que pareciam uns foguetes de tantos botões e apetrechos. Eu abrira uma e olhava suas divisórias interiores, aquelas grades, locais próprios para colocar ovos, garravas, verduras, tudo explicado graficamente no interior do aparelho por pequenos ícones, um representante uma garrafinha, outro representante uma minúscula cabeça de repolho - conclusão inclusive, à qual cheguei depois de alguns minutos de atenta observação. Junto de nós, havia ainda um casal a olhar as geladeiras ali expostas. Ex machina apareceu um vendedor - se houvesse fumaça, eu diria que foi uma brincadeira muito da sem-graça da Providência Divina - apareceu o vendedor e acostou-se ao casal, particularmente à jovem senhora:
— Eu posso lhe ajudá-la?
Eu a dois passos, apesar do meu português atrofiado - mas que me esmero em poli-lo todos os dias - quase tive uma síncope e olhei aterrado para o vendedor, acho que um olhar semelhante àquele que seu faria se um dos refrigeradores tivesse tombado sobre mim. Certamente ele percebeu o meu olhar, mas o interpretou como lhe aprouve:
— E o senhor, precisa de alguma informação?
— Eu? - perguntei acordando do pasmo; e apesar de estar fuçando nas geladeiras, não consegui dizer nada que fosse menos convincente:
— O senhor sabe onde estão as meias?
Ele olhou-me um pouco assustado e disse que estavam nos têxteis e não junto dos electrodomésticos. Apesar da absurda colocação pronominal, a primeira conclusão lógica do dia.

sexta-feira, fevereiro 10

260. O enfado pôs-se a bailar

Conheço meus amigos e conhecidos. Certamente dirão que estou a expor-me demais com essas fotografias; mas a coincidência desses distúrbios ridículos a respeito das charges de Maomé (1) e o meu estado de humor com tal, renderam uma foto quase antológica, tirada ontem pela Júlia às escondidas (por que não vi).


E voltando às caricaturas, muito me aprouve a posição do primeiro-ministro dinamarquês - eu que sempre achei a Dinamarca um estado um tanto quanto inócuo (quase como a Suíça), mudo de opinião. Em compensação, o servilismo do premiê polonês enojou-me.

Definitivamente, como diz aquela música do Serrat, o enfado pôs-se a bailar.

(1) Maomé, não Muhammed, Folha de São Paulo, jornal entreguista!

quinta-feira, fevereiro 9

259. Uma de múltipla escolha

Quem você acha que é o egrégio senhor da fotografia que se segue:


alternativas:

a. António de Oliveira Salazar (a faixa é verde e vermelha, certo?)
b. Getúlio Dornelles Vargas (tem um quê...)
c. Juan Carlos I, rei de Espanha (parece rei...)
d. Dom Luís, chefe da Casa Imperial Brasileira (como?)
e. Príncipe Alberto de Mônaco (bem... é meio calvo...)

Respondam nos comentários.

domingo, fevereiro 5

258. Letávia - IV parte

Ao Jefferson, que me cobrou da aparente inactividade.

IV

Rua da Avícola, próxima da praça Czernoczékow; paralela à praça, duas quadras para cima. Aí há uma agência, a Agência Matriz do Banco Popular e Nacional - Naradnaja i Gassudrastvénnaja Banka, mais conhecido pela abreviação Nagoban -; banco estatal para diversas coisas: fomento à agricultura, empréstimos pessoais para pequenos negócios, para compra de armas - isso desde que a legislação «nacional e oclocrática» permitiu ao cidadão letavo possuir armas desde que pertencesse a uma das seis milícias nacionais voluntárias -, e algumas outras coisas. Mas a maior e excelsa função desse banco era a concessão de fundos espontâneos para os parlamentares, assessores de ministros, ministros, pessoas fidedignas e digníssimas indicadas por outras igualmente excelsas e desconhecidas, mas muito poderosas e generosas.
No térreo do prédio da rua da Avícola, o interior da agência era escuro; móveis e gradis de madeira escura, o odor predominante era da madeira. Logo na entrada, umas mesas e por detrás do gradil algumas outras, destinadas aos supervisores e no fundo, o gabinete do gerente e a porta da Tesouraria; num canto os dois elevadores para acessar os seis andares do colosso de tijolos, inclusive o Departamento de Emissão, responsável pela emissão das coroas letavas e também o gabinete do Presidente do Banco, que é de indicação do Ministro das Finanças.
Além da Agência Matriz, o grande Banco possuía outras sete: uma no bairro belavodense de Czétiry Dómoj, outra, já no último distrito da cidade antes da campanha, o de Tjevánnaja; e mais quatro em quatro cidades letavas - visto que o país todo era dividido em dez cidades mais a capital -: Njemántsk, Brátska, Narádna e Czernavoda. Trabalhar na Matriz, na Capital era a vontade suprema de todos os funcionários alocados fora da capital, sonho de realização pessoal. «A vida está na capital», disse certa vez um Auxiliar de Escrita, «aqui em Brátska, em meio aos porcos desses vilãos imundos, que se pode esperar? Só vêm fazer empréstimos para que os porcos não lhes morram de fome. Outro dia, um suinocultor de Bela Bystrica, ali, um distritinho rural da cidade, veio pagar-me a parcela do empréstimo, coisa de umas 200 ou 250 coroas, em lingüiças. Eram uns vinte quilos. Eu não podia aceitar o pagamento: "senhor, não temos cofre refrigerado", argumentei, "fora que pagamento em gêneros, somente com autorização da Matriz". É, aquela droga daquele decreto, droga não, perdão; aquele infeliz decreto sancionado pela Dieta, que permite que os agricultores e criadores paguem duas dívidas em gêneros. O resultado foi que homem saiu emburradíssimo, pois eu lhe disse que precisava de autorização da Matriz e que demorava uns dois, três dias. "Até lá toda essa lingüiça vai estragar!" rebateu o homem exasperado, "eu não tenho geladeira!". Eu, Dima e Andrei fizemos uma vaquinha e compramos as lingüiças, pois o homem começou a espumar de raiva e disse que nos ia denunciar como traidores, falar que nós não tínhamos feito a tropa; o que é facilmente desmentido por documentos, os nossos, mas até conseguirmos fazê-lo, seríamos exonerados e exonerariam as nossas cabeças dos nossos corpos; então nós três compramos todos aqueles quilos de lingüiças do camponês; e como toda comida da região da Falha Norte, extremamente apimentada; fiquei dias, quase duas semanas comendo lingüiça e chorando à mesa por causa da pimenta; não agüento mais, por isso pedi transferência para Belavoda, para qualquer uma das três, Matriz ou as de bairro. A campanha me enoja!».
Havia ainda um sonho maior ainda, a agência no exterior a agência de Bautzen, na Alemanha.



Para quem não conhece quem escreve esse monte de asnidades (afinal, não consigo pôr a fotografia no perfil do Blogger, pois ela deve estar alocada em algum outro servidor). Um abraço a todos.

sexta-feira, fevereiro 3

257. Eu quero que a sua mãe vá pro inferno!

Será que ela fica olhando o dia todo?