quinta-feira, março 30

285. A impotência do voto

Desde que me conheço como unidade independente e consciente - ou seja, meados de 1985, quando eu tinha um porquinho de plástico amarelo e uma moeda de duzentos cruzeiros dentro dele – meu pai escrevia nas cédulas eleitorais, nos bons tempos em que existiam cédulas de papel, urnas e canetas para o exercício do voto, a urna eletrônica cerceia-nos, e ele dizia: «O voto não pode ser obrigatório»; com isso, obviamente, terminava por anular o voto. Ele sempre dizia isso em casa e, certa vez, eu já maior – idos de 1990, 1991 – perguntei o porquê da decisão aparentemente insensata. «Não há em quem votar, são todos uns ladrões de marca maior!». Cresci, e quando entrei no colégio técnico – ora, eu sou do proletariado, era óbvio que pensei no colégio técnico como uma opção de formação – me tornei a própria esquerda destrambelhada, aquela que acredita que há ainda uma revolução por fazer - visto que a minha experiência política anterior, prefiro omiti-la – e todos aqueles delírios esquerdistas. Mas apesar de tudo, mantinha a compostura: nunca sai pelos corredores de ladrilho hidráulico do colégio tentando pôr a Revolução pelo grito, sempre fui externamente tranqüilo, duma bonomia de fachada, mas sempre discutia algo com os meus acéfalos colegas.

Como éramos da área de Construção Civil – fazíamos Edificações – havia na sala os sequazes do Paulo Maluf, o prefeito engenheiro e emérito corrupto. Lembro-me muito dum colega, notório justamente pelo pensamento estreito e pela sua solida estupidez, declarou para meu horror, perante a classe toda numa aula de laboratório: «Eu vou votar no Maluf, ele na Prefeitura ou no Governo do Estado é emprego garantido para nós!». Evidente que diante de meia sala boquiaberta e outra exultante, tive de subir ao rostro e começar uma ameaça de catilinária. Primeiro referi-me às tramóias no orçamento municipal – que até hoje se encontra problemático e com dívidas para pagar pelos próximos 15 anos – e depois da sólida xilocefalia do Maluf (cara-de-pau mesmo, mas eu tinha de pôr limites ao meu néscio adversário e lancei mão dessa pequena artimanha oratória). Desarmado, ele chamou-me de idiota e eu, em resposta, fale que ele só pensava nos seus interesses particulares, tanto como o Maluf e a classe política então no Governo Federal e Estadual (os tucanos social-democratas): «É, seu imbecil, vai e vota no Maluf, besta quadrada! É sempre assim, né? Capitalismo pra mim e socialismo no rabo dos outros, né? Múmia escarnada!» E aquela justificativa porca do «rouba mais faz»; lembro-me duns tabelões publicitários nos quais havia a face do referido Maluf, junto duns dizeres: «Paulo para o bem de São Paulo»; e uma vil mão anônima revisora, na calada da madrugada, completou corretamente o anúncio político: «Paulo para o bem de Paulo», com uma lata de tinta automotiva preta, apagaram o São de São Paulo, além de terem desenhado um belo par de chifres demoníacos e um voluteante cavanhaque, obra realmente de artista. Com o meu néscio colega de classe, acabamos por nos hostilizar o resto do curso e não perdíamos a chance de alfinetarmo-nos. E assim foi. Eu era ardoroso defensor da esquerda, me dizia comunista e que viesse o Doi-Codi pregar-me à parede! E defendia comedidamente o Partido dos Trabalhadores, do qual fui eleitor e quase filiado; fora que até então, seus membros eram todos sem uma mácula nos seus passados de homens públicos.

Em casa também, volta e meia eu fazia apologia a algum notável da Esquerda – como o senador Eduardo Suplicy, um dos poucos a quem ainda tenho algum respeito – e meu pai, baseado na sua concepção pragmática da vida política, dizia-me: «um dia, quando você for votar… ou depois de algumas eleições, você vai se lembrar bem do que eu digo».

No final do Colégio, atingi a idade que pela Carta Magna da nossa República, dá-nos o direito – e dever – do voto. E a minha primeira incursão como cidadão com direito a voto, não veio só: veio junto também a honra – a obrigação, imposta com ameaça de detenção – de ser convocado pela Justiça Eleitoral para compor mesa receptora de votos. Primeiro voto nas eleições municipais: PT para a Prefeitura e PC do B para a Câmara dos Vereadores. Confesso que a administração Marta Suplicy não me decepcionou, principalmente comparando com a administração atual.

Depois, dois anos depois, vieram as eleições gerais: fui de novo de vermelho, ajudando a eleger nosso atual primeiro mandatário e para o Parlamento e Assembléia Legislativa, foice e martelo novamente. Lembro-me de ter assistido toda a posse do Presidente da República, transmitida pela televisão, até ri quando a faixa presidencial enroscou nos óculos do Fernando Henrique. Havia algo no ar, uma esperança difusa. Pela primeira vez, eu conseguia largar o meu funesto pessimismo e deixei-me acreditar que aquele Governo seria diferente, eu e todo o eleitorado que votáramos no Lula, que fora torneiro-mecânico, líder sindical preso pela Ditadura, político que tínhamos na conta dos mais decentes, apesar dos seus adversários plantarem insidiosos comentários – que já não se sabem bem que os formulou – que o tachavam de inapto para o Governo pela sua pouca instrução. Nisso ainda defendo o Presidente Lula; pois tivemos um sociólogo presidente que entregou as empresas estatais para a iniciativa privada estrangeira de mão-beijada. E não é só a minha opinião, tanto que existe um termo, usado inclusive, durante certo tempo, pela imprensa: a privataria.

Os três anos e três meses de Governo Lula foram decepcionantes: além do imobilismo, que o transformou num terceiro Governo Fernando Henrique, as denúncias de corrupção assustaram-me muito, ainda mais vinda de quem vem, gente que sempre se teve em boa consideração. O Presidente continua a brincar de cabra-cega, que não viu nada, que não sabia de nada – o que eu nem duvido que seja verdade, mas cobro que ele havia de ter agido com pulso firme, e não o fez.

Tenho de admitir hoje, que meu pai está coberto de razão, já com anos de precedência. A nossa classe política é toda corrupta e viciada, sem salvação praticamente. Quem não segue a cartilha do enche-bolso, segue a do privatismo escancarado e sem-pudor, o que nem sempre é benéfico, ainda mais no caso brasileiro.

Com a proximidade das eleições, tenho estado muito alarmado: um segundo possível Governo Lula é a mesma coisa de agora e serão oito anos de estagnação enlameada. E a possibilidade palpável da volta triunfante dos tucanos, na pessoa do atual Governador Geraldo Alckmin assusta-me ainda mais. Os outros possíveis candidatos são o restolho: o ridículo e absurdo ex-Governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, o endêmico e hirsuto Dr. Enéas Carneiro – espanta-me muito em saber que ele é cardiologista, ai dos pacientes! – e aquela migalha dos candidatos dos partidos-anão. Traduzindo em miúdos: chegamos ao apático cenário da absoluta falta de opção. O que fora apregoado até agora – e continua sendo – como nossa única arma e direito legítimo: o voto, caiu na absoluta inutilidade; é uma realidade, o voto é inútil, inútil e impotente. Não prego de pegar em armas e sair destruindo as coisas como opção, Deus me livre!, que sou amante da paz e da ordem como um bom preguiçoso de esquerda e, fora que o nosso ainda mais apático povo não tem tal capacidade de organização. Parafraseio Almada-Negreiros: uma nação é feita pelas virtudes e pelos vícios, avante, brasileiros, só nos faltam as virtudes!

Peço que vocês, meus leitores, considerem: não só a Ditadura faliu como modelo de governo, e ótimo que assim tenha sido, mas temos uma democracia morta-viva: o voto é uma instituição impotente. Será somente o referendo do pacto de governabilidade, desde sempre acertado pelas elites políticas e econômicas, que é sempre aceito, escolha-se o candidato que se escolher.

7 Comentários:

Blogger Camila Rodrigues disse...

Faça como eu, vote zero!

sexta-feira, março 31, 2006 10:31:00 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

dom sebastião, meu amigo. dom sebastião.

sexta-feira, março 31, 2006 8:05:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

não li o texto... é muito longo. presumo pela imagem que o voto é um pedaço de papel para o lixo???
é.
mas não deixa de ser a nossa opinião expressa.
sou a favor do voto.

sábado, abril 01, 2006 12:38:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

menina onapomona camila não seja feia e vote!

sábado, abril 01, 2006 12:38:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Camila,
Prego o voto nulo: se 51% do eleitorado microcélalo e apedeuta (o Dr. Enéas, por essa frase, dava um ótimo comediante, agora, como político, mostro muitas e devidas ressalvas) votar nulo, o pleito tem de ser refeito com outros candidatos. Não parece bom?

Dani,
Que tal a restauração da Monarquia? (argh! Orleans e Bragança!)

Sem Cantigas,
Realmente muito longo... são desses textos que a mão descamba a escrever por si só, como um espasmo. Também sou a favor do voto... nulo. Visto que aqui, o voto é obrigatório, nós temos que ir diante da urna sob pena de multa... bela democracia! No Brasil, cheguei à conclusão que tudo definha.

segunda-feira, abril 03, 2006 12:34:00 da tarde  
Blogger Miquel Boronat Cogollos disse...

Sérgio, tal com tu cites, «avante, brasileiros, só nos faltam as virtudes!», ho podríem dir els valencians, ara que hem aprovat un nou estatut d'autonomia, que és com la constitució o carta magna dels països sense més pretensions. I ens ha eixit un nyap considerable. I això que millora l'anterior estatut!

En qualsevol cas, pel que comentes de les virtuts dels brasilers, hui mateix El País du un article extens sobre Jaime Lerner (Curitiba, 1973), en què comenta els miracles que féu a Curitiba des del 1971 mateix, en plena dictadura. Enhorabona si el que comenta el diari és cert.

segunda-feira, abril 03, 2006 5:14:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

Tècnic,
Fiquei sabendo por cima da reforma do estatuto de Valência; mas agora é moda? Pois me parece que o País Basco também reformará o seu...
Jaime Lerner... pois é, não sei se ele era da Arena (a nossa «Falange») ou se era do MDB (o único partido de «oposição» permitido que aglutinou uma moderada oposição contra o Regime). Lerner tem sim os seus méritos... tanto que o sonho que quase todo paulistano é ir morar em Curitiba... que acabou se tornando referência em urbanismo no Brasil.

terça-feira, abril 04, 2006 8:39:00 da manhã  

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