sexta-feira, maio 5

304. Monumento

Sempre me vem à mente a imagem do Monumento da Independência, surgindo por detrás das árvores. Era o caminho da casa da minha avó, roteiro de domingos sonolentos e ensolarados. Eu pequeno, intrigava-me aquele prédio esquisito, de pedra da mesma cor das pedras que o meu avô colocara em sua casa; fora os conjuntos escultóricos, simulando batalhas – que anos depois, descobri que foram inspirados no quadro de Pedro Américo, que está no Museu, algumas centenas de metros acima. O monumento, com forma de pedestal e marchetado de bronze era – e é ainda – coroado por uma biga triunfante, que leva alguma das virtudes personificada: talvez seja a Temperança, a Liberdade ou a Verdade, alguma alegoria calcada nas representações romanas; que país engraçado que somos, uns romanos de cocar.
O monumento, é o nosso Ara Patriae, e conseqüentemente, assim como a flama eterna do Templo de Vesta, há uma chaminha da liberdade, bem diante do monumento, para quem o vê de frente, desde a Avenida Dom Pedro I. Está lá, uma luzinha amarelenta. E sabe como são as crianças; não podem ver nada de diverso que se põem a interrogar os pais à queima-roupa. E eu não fui diferente; certa vez, ainda num tempo para mim sem data, subíamos já a pista lateral da praça do Monumento no Chevette azul do meu pai, quando o carro parou no semáforo, e eu, olhando o monumento, reparei na chaminha, que me fez lembrar do meu tio, fumante desde sempre.
— Pai, que que é aquilo lá? – apontei com a mão para fora da janela do carro.
— Põe a mão pra dentro, moleque! – advertiu mamãe – Quer ficar sem mão?! Passa um motoqueiro e zás!, decepa a tua mão…
Encolhi a mão, mas não a pergunta.
— Mas o que é aquilo ali?
— Aquilo o quê? – falei pondo novamente a mão para fora do veículo em movimento.
— Põe a mão pra dentro, Sé! Eu já não avisei?! – Virou-se a minha mãe para me dar a bronca à sua moda, olhando nos meus olhos. Amuei-me no canto, mas combativo ainda…
— Mas… mas… o que é aquilo?
— Aquilo o que?! – desvirou-se minha mãe.
— Aquele foguinho…
— Foguinho? – girou a cabeça ao redor – Que foguinho?
— Aquele… aquele ali. – E pudicamente estiquei a mão, sem a pôr pela janela.
Minha mãe olhou pela janela do motorista, através do meu pai.
— E eu que vou saber?!
— Aquilo – finalmente manifestou-se o meu pai – é uma chama sagrada…
— Sagrada?! – Já pensei eu em igreja, da qual eu me pelava de medo quando menor, pois durante a missa, eu não podia mover-me que alguém logo avisava “que igreja é lugar de respeito”, “que se deve estar quieto na igreja”, e a cara enfadonha e sisuda dos santos e a expressão sofrida de Jesus na cruz, faziam-me achar que o Padre batia nas crianças mal-educadas com o incensório ou com o atril… - Sagrada? Igual às velas que tem na igreja?
— Não… é um tipo diferente de sagrado… não é sagrado nesse sentido… não é sagrado de igreja, mas sim de pátria. - Respondeu calmamente meu pai.
— É sagrado de que?
— Hum… é na verdade simbólico… representa a independência, aquela chama…
— Ah, a independência…
— Isso… igual na escolinha, quando você foi o Pedro I…
— Eu não fui o Pedro I… escolheram o André que tem o cabelo mais escuro… a Professora disse que ele se parecia mais… eu fui o mensageiro… André… chato…
— ’Tá! Tudo bem… mas, em resumo, é aquilo. Aquela chama representa a Independência. Enquanto ela queimar, o Brasil continua independente e soberano…
— Soberano? – perguntei.
— É, soberano… livre, sem ter de prestar contas, como nós prestávamos a Portugal, entendeu?
— Entendi… mas o que que queima ali? A independência?
— Não, não é a Independência. A Independência não queima, é uma coisa que existe e não existe… não é igual uma pedra… não tem uma coisa que se chama Independência…
— A independência é igual a Deus? Que existe mas ninguém vê? A independência é Deus, pai? Pode-ser uma rocha, se não for uma pedra?
— Não, menino! Arre! Aquela chama só diz que enquanto ela ’tiver acesa, o Brasil não será dos portugueses… a idéia é exatamente essa…! – O semáforo ficou verde e carro lentamente começou a mover-se para pegar a lateral da Praça do Monumento. Fiquei olhando o Monumento girar-se e mudar os ângulos, sob o sol fulgente.
Uns meses mais tarde, já no outono, fazíamos novamente o percurso dominical e paramos no mesmo semáforo, e lá estava o mesmo monumento, que continua lá até hoje; só que o dia era dos típicos paulistanos: um céu plúmbeo e a finíssima garoa tão característica destas terras, o tipo de clima que muda a cor das coisas, das casas e dos prédios. O próprio monumento parecia mais escuro, envolto de cinza e úmido. Mirei na aberturazinha coberta e… onde estava a chama perene? Sumira…
— Olha lá, pai, onde ’stão os portugueses?
— Que portugueses, menino?
— Ali, ó! – apontei o nicho apagado, passando a mão sobre a cabeça do meu pai e pondo-a para fora do carro.
— Ô, põe a mão pra dentro, moleque! – berrou a minha mãe – querem que te cortem ela fora?!
Meu pai olhou o nicho.
— Ah, a chama? É que de vez em quando acaba o gás…
— Então a independência é movida a gás, pai?
— A Independência não é movida a nada, menino; de onde você tirou essa loucura?
— E não é o gás que faz a chama pegar fogo, pai?
— É.
— Então… e a chama não é a independência?
— Não, não é… digo, é e não é. Apenas representa.
— Mas apagou…
— O gás acabou… ou a garoa umedeceu o nicho e o bico de gás…
— Mas e os portugueses?
— Mas que português, homenzinho?!
— Que vêm quando a chama apaga…
— Não, Sérgio, eles não vêm…
— Não? Como não, se a chama apagou…
— Eles não têm interesse, nós somos economicamente inviáveis e politicamente insustentáveis…!
— Bem, pára com isso… - disse a minha mãe.
— Que venham os portugueses, pelo menos não são nem russos e nem americanos. Brezhnev… hunf! Francamente!
— Mas pai…?
— O que que houve, seu comunistinha? – disse meu pai vermelho (e ele nunca fica vermelho)
— E o foguinho contra os portugueses?
— Quando a gente chegar na sua avó, a gente põe fogo nela, que é espanhola… espanhol, português, dá tudo na mesma. Assim se resguarda a Independência e espanta os mosquitos.
— Ei, olha como você fala da minha mãe?! – vociferou mamãe desde o banco do passageiro.
— Sua mãe, a Independência, os portugueses, a União Ibérica, dom-pedros com bigodes de guache (bigodes de guache, meu Deus!), chaminhas e monumentos! Arre! Vocês dois, me deixem em paz.
Eu e mamãe não falamos mais até chegarmos à casa da minha avó.

6 Comentários:

Blogger Mónica disse...

muito bom! muito bom!
(eu e a tua mãe temos algo em comum, hehehe)
gás alimenta a independência sim! olha os árabes que o digam do petróleo!!!
qual é a origem do teu pai? hehehe percebo essa maneira de falar contra bigodes de metrópole!

muito bom! adorei!

domingo, maio 07, 2006 12:06:00 da tarde  
Blogger Camila Rodrigues disse...

Adorei, Sérgio...
Como você está cansado de saber e acredito que o modo de ver de uma criança, especialmente quando expresso em perguntas, é sempre rico...
Beijo
Ca

domingo, maio 07, 2006 3:20:00 da tarde  
Blogger Dalva M. Ferreira disse...

Olá!

Adorei o texto, ri gostosamente... eu não sou paulista, sou mineira, mas amo essa cidade de paixão. Fico triste quando vejo certas cavalgaduras depredando monumentos, pixando. Eu amo São Paulo mais do que muito paulistano que anda por aí... e o Ipiranga é lindo!

Você escreve muito bem! que invejinha...

domingo, maio 07, 2006 7:52:00 da tarde  
Blogger Mónica disse...

"... à casa da minha avó."

segunda-feira, maio 08, 2006 4:47:00 da manhã  
Blogger Sérgio disse...

Sem Cantigas,

Tens razão; esqueceu-me dos árabes... Papá? avô português, avó italiana...
Corrigido, corrigido... esses teclados traïdores...

Camila,
Muitas graças... embora tenha vários enxertos, visto que a minha memória da época é benm falha, tinha uns 4, acho...

Dalva,
Obrigado; engraçado que a maioria das pessoas que aqui mora, nem liga para o que tem. Mas é o de sempre: ser paulistano é amor e ódio pela cidade...

segunda-feira, maio 08, 2006 10:04:00 da manhã  
Blogger Fatimah Almeida disse...

Olá, Conde

Voltei... Se puder colocar a Anahid por aqui ficarei feliz =)

Beijos

segunda-feira, maio 08, 2006 1:04:00 da tarde  

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