sábado, junho 24

325. Fragmenta miseriae hominis (II)

III
Andar pela cidade, ver os automóveis e os ônibus, o movimento rápido e controlado, os semáforos, os guardas de trânsito gesticulando, as esquinas e as faixas de pedestres. O cafezinho servido fumegante no balcão duma padaria, protegida do rumor da grande avenida por vidros, e de dentro - de onde foi servido o cafezinho - o nome da padaria lido inversamente.
Pensar que há umas centenas de anos, as árvores e a mata densa cobria todo esse espaço e não se ouvia mais que o rumor do vento balouçando as árvores e uns pássaros; provavelmente na parte mais baixa, onde hoje há aquela via expressa, havia algum simpático regatinho, que os primeiros portugueses cruzaram com os pés descalços. Desde então, o sol tem nascido regularmente todos os dias, mesmo encoberto pelas nuvens; só o espaço sofreu alterações. E para que? Esses carros, esses ônibus, são tão inúteis. Assim como essas pessoas que andam pela calçada, que correm atrás duns louros fátuos e efêmeros: hoje vicejam, amanhã esfarinham-se ao menor movimento de ar. Essas mulheres de tailleur, salto alto e passo apressado, que passam diante da vitrina da padaria falando em telefones celulares, seus educados cabelos presos que ocultam pérfidos pensamentos comerciais.
Pobres dos limpadores de janelas, que ficam dependurados nos arranha-céus espelhados. Deixem que se acumule a poeira; o que vem do ar, vem dos céus e é bênção divina. Deixem que a poeira se acumule nos vidros, tal como se acumula nos carros parados no pátio do Detran, onde logo, em estado de graça, dos três-dedos de poeira acumulados na maçaneta duma porta duma Brasília grená enferrujada, a Natureza começa a ressurgir numa plantinha frágil, mas de verde forte, tirando seus nutrientes da massa de poeira cinza condensada pela chuva de meses.
Por que essa briga de faca corporativa, esses atraiçoamentos financeiros e essas rasteiras e esmurregadas na Bolsa e por telefone? Hoje são um troféu, amanhã são uma troça; essa gente está toda de miolo mole. Os manifestantes continuam à porta dos ministérios e dos palácios do Executivo, e a polícia continua a aspergir borrachadas, tal-qual em priscas eras. E uns tantos bajuladores cumprimentam as autoridades pelas medidas de «pulso firme»; o puxa-saquismo é religião sacramentada e procedimento oficial, mais oficial do que o politicamente correto - muito embora relutarão até o fim em dizê-lo.
E essas agências de banco? Com seus móveis de fórmica e cadeiras estofadas pagas com os juros esfolados de quem não tem um único centavo e deve até a estampa das ceroulas pelo empréstimo contraído, teve de hipotecar os grampos que seguram o coque da velha mãe. Gerações de esmagados pelo sistema financeiro, pelas cédulas de mudam a cada lustro e a cada década, pelas moedas que viram limalha ainda nos nossos bolsos. Os nossos salários de vinténs achatados há vintênios.
E esse café que tem gosto de asfalto... e por que tanto, se hoje estamos a respirar e, quem sabe amanhã se estaremos a fazê-lo e não engordando o capim?

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