sábado, julho 8

329. Poësia plus-quam-vagabunda (II)

Apesar

Alguém que tem andado contente,
apesar de tudo,
apesar de todos,
apesar de iberos e romanos,
cristãos e muçulmanos,
vendedores e trovadores,
marreteiros e ambulantes;
apesar de Gibraltar e Malta,
apesar dos mártires e traïdores,
guibelinos e inquisidores,
motoristas e cobradores;
o sol continua nascendo,
as nuvens se levantam
e os passarinhos cantam,
apesar das gentes pouco pensarem
e irem vivendo como gado.

Ali pela rua, vão dois mendigos
dividindo uma garrafa de pinga.
Cambaleando como se dançassem num musical.

Vai-se indo,
apesar dos trabalhadores e vagabundos,
contadores e metalúrgicos...
apesar da guerra e da paz armada,
apesar da umidade que dana os livros,
e dos radicais livres,
dos tigres, do Eufrates
e desses regatos sem-vergonhas de subúrbio,
vive-se, em suma.
Apesar dos galegos e dos catalães,
dos aproveitadores e charlatães;
da distância do mar
e do abismo entre as duas Américas.
Apesar das necessidades e dos vícios,
das veleidades e dos néscios,
das velhinhas que dão de comer às pombas nas praças
e dos aviões que jogam bombas nas fossas.
Apesar dos piratas
que não têm perna de pau nem louro,
nem uma nau, nem ouro,
mas navegam com cédulas do Banco Central,
em lugar de velas.
Apesar dos terrenos que não existem,
dos que vendem os viadutos
e dos que se preocupam mais com a vida dos alfaces.
Apesar do cheiro da tinta
e dos moveis cobertos com jornal e notícias velhas.

Passam os mendigos de volta,
com uma tigela de sopa
e uma trouxa envolta
num saco de estopa.

Apesar do mar, a uma África daqui,
apesar da África e da Líbia.
Apesar da Síria.
Apesar das fotos velhas, do CPF,
a reservista e a carteira de identidade.
Apesar do sol, apesar da chuva e da névoa.
Apesar da insônia, da infâmia e da inércia,
apesar da consciência e da Constituição,
apesar da fundição e da indústria naval
e dum extenso canavial.
Apesar das lágrimas e dos fósforos,
das canetas vermelhas e das borrachas,
do bilhete-único e do sinal da catraca,
apesar do aperto no metrô
e do itinerário tortuoso dos ônibus,
dos bônus do tesouro nacional e das acções preferenciais,
dos ônus dos programas espaciais,
da preferencial da avenida e da baliza.
Apesar das misérias todas,
dos andaimes que tombam,
das bandas que retumbam
e das tumbas que nada fazem, só jazem.

Vive-se, em suma
e se dorme profundamente
sentado num banco de metrô.

1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

E de repente tantas e tantas imagens em uma cabeça só que fiquei tonta...

segunda-feira, julho 10, 2006 1:47:00 da tarde  

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