quinta-feira, julho 20

335. Curta fábula urbana (VIII)

Cinco centavos

Ao Donato.

Germano era daquelas pessoas que sempre se esforçava para ajudar os outros: quando dava uma esmola a um pedinte ou ajudava um cego ou uma velhinha a atravessar a rua, dormia bem por semanas seguidas sem de ter de repetir o ato, não era absolutamente viciado nem partidário do politicamente correto, só nas aparências, é claro.
Aconteceu que, certa vez, Germano estava com um amigo num café - café aqui é um eufemismo, poderia ser, e quase certamente o é, uma lanchonete fedorenta, um bar risca-faca ou um comida-rápida cretino. Mas não importa muito, o que importa é que Germano estava com um amigo no balcão de uma casa comercial de comestíveis e bebidas, em baquinhos quase juntos à porta, no centro da cidade. Trocava umas impressões com o já referido amigo, quando se lhe aproximou um pedinte vindo da rua e havia burlado a flácida vigilância do roliço aprendiz de leão-de-chácara que estava a porta. O pedinte cortou a conversa:
— Ei, amigo, você poderia me arrumar um trocado?
Germano, compungido pelo aspecto miserando do mendigo e pelo forte odor que começava a alastrar-se pelo ambiente, enfiou rapidamente a mão no bolso e de lá tirou a única moeda que achou, jogando-a de chofre na mão que pedia silenciosa e esticada. Voltava já ao ambiente da conversa, quando Germano percebeu que o vulto do pedinte continuava à beira da sua visão periférica, como um borrão e, tampouco o fétido miasma havia se dissipado.
Virou o rosto a ver por quê ainda estava prostrado ali o homem. Virou-se e deu de cara com os olhos castanhos do mendigo que devorava a Germano com o olhar fero e a mão espalmada ainda, tendo bem no meio da palma, a castanha moeda de cinco centavos, escura, parecia um furo. Foi o que lhe saíra do bolso.
— Chefe, não tem mais um pouco...?
Germano tinha somente, acima daquela moeda, uma nota de cinco reais. Não, cinco reais é muito para ser dado de uma única vez a um único pedinte, Pensou rapidamente e deu-se conta de que, com cinco reais poderia dar até dez esmolas, sendo cada uma numa prateada moeda de cinqüenta centavos, um baronete para cada um dos dez necessitados do futuro próximo. Também lhe pareceu despropositado ir até o caixa do bar-boteco-cafeteria e pedir que lhe trocasse a cédula. O afortunado recebedor dos cinco centavos teria de contentar-se com os cinco centavos que lhe foram destinados pelos desígnios divinos, de estarem ali, no bolso de Germano, da benevolente mão direita de Germano os terem tirado do bolso e posto-os nas crostosas mãos do mendigo.
— Não, não tenho mais... - respondeu Germano virando o rosto para o copo de café que estava sobre o balcão. A conversa já havia perdido o seu fio.
O mendigo começou a afastar-se em direção a porta, raivoso e resmungão. Germano ouviu e comentou com o amigo:
— Afinal de contas, que queria esse tipo? - resmungou Germano.
O mendigo ouviu, apesar da imundície nas suas orelhas. Prostrou-se na calçada, de pernas afastadas e começou a ameaçar Germano, com umas palavras falhadas.
— Tá achando que fez muito é?! Com isso aqui - segurou a moeda entre o indicador e o polegar da mão direita, mostrando-a a toda a assistência do balcão do bar que, agora, tinha um espetáculo privado.
Germano virou a mirada para dentro do balcão, ignorando os impropérios. O mendigo berrou mais um pouco e erguia a moeda de cinco centavos ao céu, quase como faz o padre durante a missa, quando consagra a hóstia, e com a cabeça erguida aos céus, clamando pela justiça divina. Vendo que Germano, a duras custas o ignorava, num ato de suprema raiva, atirou a moeda de cinco centavos em direção a Germano, com força. A moeda bateu no balcão, perto da perna do amigo de Germano e dali bateu no chão, onde deslizou por um meio-metro ainda, parando perto dum vaso de comigo-ninguém-pode que ali havia.
Quando germano olhou, atraído pelo barulho do movimento, logo viu a moeda num derradeiro deslize em direção ao vaso. Virou-se bruscamente para olhar ao mendigo e esse já pisava duro em direção ao viaduto, gesticulava e andava. Toda a assistência do bar mirava Germano que, de improviso levantou-se, de uns poucos passos curtos e recolheu o dureto do chão. Os bebuns do balcão - excelsa e digna assistência - ficaram silenciosamente observando Germano, que ao fim exclamou:
— Se ele não quer, tem sempre alguém que quer.
Evidente que o sono de Germano turbou-se pelos dias seguintes, até que ele conseguiu, quase uma semana depois, dar a bendita moeda a um daqueles pedintes que ficam sentados com a mão aberta e nem olham o que lhes cai a mão, mantendo sempre a cabeça baixa e agradecendo com um murmúrio mecânico e metálico: «Que Deus lhe pague» ou «Que Deus lhe dê em dobro», «Que Deus lhe abençoe» e outras tantas fórmulas invocando a intervenção divina. E foi ali mesmo, nas imediações do bar-lanchonete-café, quase junto ao viaduto, uma velhinha magrinha, morena recebeu a moeda de Germano; exatamente aquela moeda de cinco centavos. Não levantara a cabeça a miseranda senhora e agradeceu com uma qualquer das fórmulas-chavão. Depois sim, Germano voltou a dormir com regularidade.

5 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

deve ser por isso que não dou esmolas... ou não. Deve ser mesmo porque não me comovo.

quinta-feira, julho 20, 2006 1:53:00 da tarde  
Blogger Sérgio disse...

É, Sissi. Certa vez escutei que a esmola é o imposto social pela miséria. Não deixa de ter um certo senso na frase.

sexta-feira, julho 21, 2006 8:56:00 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Tenho dado muita esmola nos últimos tempos. E também não tenho deixado de recolher todos os panfletos imobiliários que caem nas minhas mãos, durante o sinal vermelho. O engraçado é que tenho feito estas microcaridades sem a menor sensação de alívio ou dever cumprido. É coisa puramente maquinal.

domingo, julho 23, 2006 4:23:00 da manhã  
Blogger Cicero disse...

Muito bom texto, Sergio. Mesmo. Parabéns.

segunda-feira, julho 24, 2006 10:11:00 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

O que é um baronete?

terça-feira, julho 25, 2006 11:40:00 da manhã  

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