sexta-feira, junho 30

326. Curta fábula urbana (VI)

Morte

Darrera les muntanyes
visc la incertesa del meu destí,
[...]

(Darrera les muntanyes, Lluís Llach)

Numa tarde de segunda-feira chuvosa, entra no boteco quase à porta do cemitério, um distinto homem de meia-idade, de terno e gravata e senta-se junto do balcão no banquinho giratório, depõe o guarda-chuva no canto, entre a parede e o balcão e pede dois dedos de aguardente. Gira o banquinho sob si e fica olhando para fora, o movimento em direção do cemitério, visto que a rua acabava exatamente no portão e não era mais que um caminho de acesso que teve as laterais loteadas. Passava um carro fúnebre, depois de mais meia hora passava mais um grupo de pessoas a pé, consolando uma viúva, passa o carro de entregas da floricultura, cheio de coroas de flores.
O homem de terno preto pede ao balconista mais dois dedos. O balconista vê a expressão de total desamparo do homem, e junto com a pinga, arrisca umas palavrinhas:
— Nessas horas é mesmo terrível...
— De fato - respondeu o do terno -, libera nos de ore leonis!
O rapazinho do balcão não entendeu o latim do homem do terno, mas entendeu o libera nos.
— Pois é, Deus nos livre... mas todo mundo morre... a vida é assim.
O homem do terno sorriu.
— Tem razão, se ninguém no mundo morresse e só nascêssemos, o mundo seria insuportável de tanta gente...
— Isso mesmo - disse o rapazinho acenando sim com a cabeça - o senhor tem razão.
O homem do terno pagou as duas doses de pinga, deu uma gorda gorjeta ao rapaz, que lhe devolveu dois costumeiros tapinhas nas costas em sinal de consolo, e foi para a porta do estabelecimento, com a mão nos bolsos, olhando novamente para a pequena rua de acesso ao cemitério. Passados uns quinze minutos, chegou um carro fúnebre e parou à porta do bar também, o motorista saiu e cumprimentou o homem do terno:
— Guilherme! Faz muito tempo que você está aí?
— Não, não. Coisa de uma meia hora... uns quarenta minutos talvez... estava tomando um trago...
— Muito bem... - concordou o motorista - está pronto? Vamos lá?
— Vamos, vamos lá.
O motorista abriu a parte de trás do carro fúnebre, onde havia um esquife; abriu o esquife e fez sinal para Guilherme.
— Só um instante! - fez Guilherme.
Voltou à porta do bar, onde estava o jovem balconista, tirou a carteira e deu-lhe o dinheiro que achou ali.
— Toma, fica tudo pra você. - pôs o dinheiro nas mãos do jovem e fechou-as com as suas - Obrigado e até... até mais!
O rapaz estava mudo. Olhou para o dinheiro, várias notas de talhe alto e quando ergueu a vista novamente, o motorista do carro estava sozinho, fechando o esquife. Fechou também o tampão de trás do carro e voltou para o volante. Antes de continuar, cumprimentou o rapaz com um ligeiro sorriso e um aceno na altura da têmpora. O carro começou a andar e entrar lentamente no cemitério. Vinha subindo pela rua uma procissão cantada, que trazia mais um morto. Vinham cantando, até que bem, de modo conveniente:
Libera animas... omnium fidelium defunctorum... de poenis inferni... et de profundo lacu.
Vinha com eles um padre que olhou para o balconista à porta. O balconista persignou-se:
— Amém...!
Volta para dentro da loja e vê o guarda-chuva no canto. Isso ocorreu faz alguns anos e o balconista, que era afinal, o próprio dono do bar, mantém o guarda-chuva pendurado alto numa parede lateral do bar. E volta e meia algum bêbado mais insolente ou parente de morto que bebeu demais troça:
— Eh, João! E esse guarda-chuva aí, pendurado na parede? Nem ’tá chovendo!
— Deixa ele aí... é do seu Gulherme e ele vai voltar pra pegar...
— Ele ’ta aí faz anos! Esse tal Guilherme não volta mais...!
— Volta, volta sim. Como todos nós vamos voltar...
A troça geralmente acabava por aí, pelo tom profético do João e com expressões sobressaltadas de bêbados.

sábado, junho 24

325. Fragmenta miseriae hominis (II)

III
Andar pela cidade, ver os automóveis e os ônibus, o movimento rápido e controlado, os semáforos, os guardas de trânsito gesticulando, as esquinas e as faixas de pedestres. O cafezinho servido fumegante no balcão duma padaria, protegida do rumor da grande avenida por vidros, e de dentro - de onde foi servido o cafezinho - o nome da padaria lido inversamente.
Pensar que há umas centenas de anos, as árvores e a mata densa cobria todo esse espaço e não se ouvia mais que o rumor do vento balouçando as árvores e uns pássaros; provavelmente na parte mais baixa, onde hoje há aquela via expressa, havia algum simpático regatinho, que os primeiros portugueses cruzaram com os pés descalços. Desde então, o sol tem nascido regularmente todos os dias, mesmo encoberto pelas nuvens; só o espaço sofreu alterações. E para que? Esses carros, esses ônibus, são tão inúteis. Assim como essas pessoas que andam pela calçada, que correm atrás duns louros fátuos e efêmeros: hoje vicejam, amanhã esfarinham-se ao menor movimento de ar. Essas mulheres de tailleur, salto alto e passo apressado, que passam diante da vitrina da padaria falando em telefones celulares, seus educados cabelos presos que ocultam pérfidos pensamentos comerciais.
Pobres dos limpadores de janelas, que ficam dependurados nos arranha-céus espelhados. Deixem que se acumule a poeira; o que vem do ar, vem dos céus e é bênção divina. Deixem que a poeira se acumule nos vidros, tal como se acumula nos carros parados no pátio do Detran, onde logo, em estado de graça, dos três-dedos de poeira acumulados na maçaneta duma porta duma Brasília grená enferrujada, a Natureza começa a ressurgir numa plantinha frágil, mas de verde forte, tirando seus nutrientes da massa de poeira cinza condensada pela chuva de meses.
Por que essa briga de faca corporativa, esses atraiçoamentos financeiros e essas rasteiras e esmurregadas na Bolsa e por telefone? Hoje são um troféu, amanhã são uma troça; essa gente está toda de miolo mole. Os manifestantes continuam à porta dos ministérios e dos palácios do Executivo, e a polícia continua a aspergir borrachadas, tal-qual em priscas eras. E uns tantos bajuladores cumprimentam as autoridades pelas medidas de «pulso firme»; o puxa-saquismo é religião sacramentada e procedimento oficial, mais oficial do que o politicamente correto - muito embora relutarão até o fim em dizê-lo.
E essas agências de banco? Com seus móveis de fórmica e cadeiras estofadas pagas com os juros esfolados de quem não tem um único centavo e deve até a estampa das ceroulas pelo empréstimo contraído, teve de hipotecar os grampos que seguram o coque da velha mãe. Gerações de esmagados pelo sistema financeiro, pelas cédulas de mudam a cada lustro e a cada década, pelas moedas que viram limalha ainda nos nossos bolsos. Os nossos salários de vinténs achatados há vintênios.
E esse café que tem gosto de asfalto... e por que tanto, se hoje estamos a respirar e, quem sabe amanhã se estaremos a fazê-lo e não engordando o capim?

sexta-feira, junho 23

322 bis. I així ho dius tu

Republico o poema, pois assim posso incluir a dedicatória (a Mme. Tardelli) e as correções devidas que mas mandou o amigo Miquel, desde Valência, no concernente à versão em catalão, a quem aproveito para agradecer novamente.

E assim o dizes tu


«Muita solidão no mundo», disseste tu,
e da mesma maneira estou de acordo.
Somos dez milhões,
porém, estamos todos sós
nesta espessa névoa de poeira;
chove poeira.

Camões já tinha razão:
«É solitário andar por entre a gente».
É muito solitário,
mesmo com o barulho dos vizinhos
em plena madrugada.
«Muito frio no mundo», disseste tu,
e te digo que é em todos os sentidos.

Faz frio
e urge quebrar o gelo
que se formou nas janelas.
Senão, não veremos nada nunca.

* * *

I així ho dius tu


«Massa solitud al món», vas dir tu,
i hi estic d’acord.
Som deu milions,
però estem tots sols
en aquesta espessa boira de pols;
plou pols.

Camões ja tenia raó:
«És solitari anar entre la gent».
És massa solitari,
fins i tot amb el soroll dels veïns
en plena matinada.
«Massa fred al món», vas dir tu,
i et dic que ho és en tots els sentits.

Fa fred
i cal trencar el glaç
que s’ha format a les finestres.
Si no, no veurem mai res.

quarta-feira, junho 21

324. Fragmenta miseriae hominis

I
Vai o trem, cortando a névoa em direção a Rio Grande da Serra. Os passageiros, sentadinhos, quietos e comportados. Não há nada para olhar, os vidros parecem leitosos e opacos. Não há nada para olhar, não há nada para dizer, nem nada a sentir. O fundo do bolso nega-me alguma moeda ou o molho de chaves para que a minha mão distraia-se. «Depois de Paranapiacaba, há um abismo», diz alguém no fundo do vagão - «e depois, no fundo do abismo, há o mar» diz outra voz; é o mar onde me diluo, é o mar que só acaba em África, léguas e léguas de desolação azul. Uma vozinha, duma criança que vem andando tropegamente pelo vagão, com passinhos inseguros, apoiando as mãozinhas de dedinhos roliços, pára diante de mim e diz num tom baixinho e com indescritível candura: «Sabe, moço, eu acho que não há nada do que eles dizem... você vê algo lá fora?». Realmente não se via nada. Quando olhei, a graciosa criança continuava seu passeio bamboleante por entre as poltronas.
Olhei pela janela e não vi nada que não fosse a névoa leitosa ou no máximo a silhueta borrada e veloz de algum poste ou instrumento de tráfego junto dos trilhos, fora isso, o resto estava diluído na névoa densa; nada mais se ouvia além do roçar infinito das rodas contra os trilhos e nas suas eventuais falhas e emendas, produzindo os característicos claques e baques; e eu não sentia nada além duma sonolência fortíssima da qual não podia defender-me.
O trem ia cortando a névoa, em direção a Rio Grande da Serra, os passageiros, quietos, comportados e sentadinhos. Adormeci.

II
O mundo me parece um desfile de metáforas mal-feitas valsando músicas desconexas. Umas gritam e outras pegam fogo; outras tão-somente flutuam, outras sobem em pedras e declamam discursos incôngruos e pomposos. Há ainda as que escorrem e untam o chão com seu sangue gorduroso: têm rodas como os ônibus mas são caixas de sapatos. São musas com insuportável odor de querosene, poços de petróleo que jorram suco de laranja. Há as que vêm por telefone, malditas!

domingo, junho 18

323. A copa até agora

No jogo contra a Croácia, terça-feira última, dormi na sombra, sob as árvores dum dos inúmeros jardins do campus da Universidade; acordei com os fogos-de-artifício do único gol da Seleção (E dizem que foi bem mixo). O jogo de hoje, contra a Austrália, dormi confortavelmente na minha cama mesmo, malgrado o barulho da gigantesca torcida circunstante.

quarta-feira, junho 14

322. I així ho dius tu


E assim o dizes tu


«Muita solidão no mundo», disseste tu,
e da mesma maneira estou de acordo.
Somos dez milhões,
porém, estamos todos sós
nesta espessa névoa de poeira;
chove poeira.

Camões já tinha razão:
«É solitário andar por entre a gente».
É muito solitário,
mesmo com o barulho dos vizinhos
em plena madrugada.
«Muito frio no mundo», disseste tu,
e te digo que é em todos os sentidos.

Faz frio
e urge quebrar o gelo
que se formou nas janelas.
Senão, não veremos nada nunca.

* * *

I així ho dius tu


«Massa solitud al món», vas dir tu,
i tanmateix sóc d’acord.
Som deu milions,
però, estem tots sols
en aquesta espessa boira de pols;
plou pols.

Camões ja tenia raó:
«És solitari anar dentre la gent».
És massa solitari,
mateix amb el soroll dels veïns
en plena matinada.
«Massa fred al món», vas dir tu,
i et dic que ho és en tots els sentits.

Fa fred
i cal trencar el glaç
que s’ha format a les finestres.
Sinó, no veurem mai res.

sexta-feira, junho 9

321. Mustafá Kemal Atatürk

Tenho profunda admiração por Mustafá Kemal Atatürk, fundador da atual República da Turquia, por poder ser a prova cabal de que um povo majoritariamente islâmico pode formar um país laico como qualquer outro povo. O kemalismo pode ser definido em uma única citação do próprio Atatürk:


«As regras e teorias de um velho sheik árabe chamado Maomé e as abstrusas interpretações de gerações de sujos e ignorantes padrecos fixaram a lei civil e penal da Turquia. Eles determinaram a forma da constituição, as mais pequenas ações e gestos do cidadão, a sua alimentação, as horas para levantar e dormir, tradições e hábitos e mesmo os mais íntimos pensamentos. O Islã, essa absurda teologia de um beduíno amoral, é um cadáver podre que envenena a nossa vida. A população da república turca, que reclama o direito a ser civilizada, tem de demonstrar a sua civilização através das suas ideias, sua mentalidade, através da sua vida familiar e seu modo de vida».

Evidente que o vocabulário é um pouco venenoso, mas o importante é a demostração da necessidade de desvinculação do Estado e da religião.

E faço público o meu agradecimento ao Pai dos Turcos, pelo bem que ele fez à Turquia e teria feito ao mundo todo, se seus exemplos fossem observados (principalmente no mundo Islâmico). Quero ter oportunidade, na viagem que pretendo, tão-logo quanto possível, fazer à Itália, dar uma esticada até Istambul, e depositar uma coroa de flores no Anitkabir.

N. B.: quanto ao fato de que o Atatürk bebia, grande coisa. Winston Churchill também era um beberrão emérito e ai da Europa se não fosse ele!

P. S.: quanto à Copa do Mundo, pouco me importa.

quarta-feira, junho 7

320. Fauna política brasileira

(ovvero Bestiário da pré-história política)

Delfim Netto


É lícito dizer – pelo menos eu penso – que a nossa política é uma selva, ou um tipo de selva, floresta, bosque. Mesmo com a equalização do espectro político – parece até aquele disco que você gira e as cores nele misturam-se até ficar tudo branco! Disco de Newton, segundo o meu velho livro de Ciências – temos ainda os nossos dinossauros e fósseis. Dinossauros por que, ainda que sejam vetustíssimos na política, movem-se e volta-e-meia vê-se-os por aí, com a sua boca cheia de dentes – podres, obviamente -, aberta, defendendo-se de alguma acusação, respondendo a algum processo. Os fósseis são aqueles que têm uma cadeira no Parlamento e dela não rastejam nem quando é época de eleições. Querem os votos dos seus currais eleitorais, feitos de fungos e planárias majoritariamente. É o que eu digo: por exemplo, Delfim Netto. Deputado por São Paulo, agora do PMDB (meu Deus!, não sei se comentei já isso aqui, mas foi o acontecimento dos últimos tempos que me deixou sem fôlego!) é um típico espécime da fauna política brasileira. Você, que me lê, conhece alguém que volta no Delfim Netto?! Às vezes, tenho vontade de sair na rua, com um megafone em punho ou um carro de pamonha, perguntando: «Mas quem raios vota no Delfim pra Câmara? Será que os egrégios eleitores poderiam pôr a cara à janela?!». Gostaria de ver o aspecto do eleitor do Delfim Netto. Talvez, por sentimentos politicamente-corretos, obesos votem nele; mas eu conheço obesos arraigados de esquerda que jamais dariam um voto para limpador de fossa para o Delfim. Ou talvez, simpatizantes do lado mais «delicado» do ex-Ministro da Economia. Ou partidário de que ele seja o Anjo do catastrófico Milagre Brasileiro. Um anjo de chifres, cá entre nós.
Pois é, mas é um fóssil que soube resistir às tormentas políticas, maquiavélico no sentido mais puro do termo, um valsador político: foi mudando de cor progressivamente até cair no partido que lhe fizera oposição, o PMDB. Mesmo um partido que tenha Orestes Quércia entre nas fileiras (outro dinossauro), é obsceno que aceite Delfim como membro; Delfim era da Arena; como um político que era alinhado com a Ditadura pode passar para o PMDB que, historicamente era o partido que fazia oposição ao Regime (embora fosse um bipartidarismo «montado», por assim dizer). Mesmo com esse monte de poréns, como – como, eu me pergunto – Delfim foi parar no PMDB? Conveniências políticas dum fóssil.
Há algumas semanas, durante uma palestra sobre literaturas espanholas, uma professora do Centro Catalònia de São Paulo mostrou-se indignada que um ex-Ministro do Franco ocupasse a presidência da Xunta de Galícia (o governo autônomo galego). Ela não viu absolutamente nada, comparando com o que temos cá.

terça-feira, junho 6

319. Gincana junina do Machadada


Você consegue saber em qual língua está escrito o texto que se segue?

Fæder ure þu þe eart on heofonum,

Si þin nama gehalgod.

To becume þin rice,

gewurþe ðin willa,
on eorðan swa swa on heofonum.

urne gedæghwamlican hlaf syle us todæg,
and forgyf us ure gyltas,
swa swa we forgyfað urum gyltendum.

and ne gelæd þu us on costnunge,
ac alys us of yfele. soþlice.


Esse texto é o Padre Nosso.
Consegue identificar a língua? Responda nos comentários.

sábado, junho 3

318. Anglice loqui

(Roma, mãe de todos os latinos)

«É muito sabida a influência enorme que o helenismo exerceu sobre a Itália, onde eram imitados da Grécia os costumes, literatura, teatro, a indumentária, a cozinha, etc., etc.; importava-se tudo que era grego, omnia graece, como disse Juvenal. A língua helênica devia ser ensinada às moças nas escolas a que Tito Lívio se referiu. As romanas exprimiam a cólera, a alegria e as preocupações nesse idioma: hoc iram, gaudia, curas effundunt (Juvenal, Sátira IV). Esse poeta satírico se revoltava e julgava indecente que uma velha se expressasse em grego: Non est hic sermo pudicus in vetula (ibidem). Houve longa reação contra a língua e contra os costumes helênicos. Entre os reacionários [?] estava Catão, o antigo, que finalmente foi obrigado a ceder e aprendeu grego aos oitenta anos de idade.»

Extraído do Almanaque do Correio da Manhã 1955 (do tempo que os jornais ainda se preocupavam com cultura e não somente em encartes perfumados ou inserções comerciais de grandes empreendimentos imobiliários) (vide Post scriptum no final do texto)

Ser-me-á muito dolorido ter de aprender inglês de forma séria. Não por puro anti-americanismo, mas porque, frente às línguas latinas, a considero quase incompleta, pobre de vocabulário. O inglês apresenta-se-me como uma língua de auxílio, um patoá para o comércio, nunca uma língua de cultura. Se há os que gostam, não os censuro, mas as menininhas que entram nas escolinhas de inglês da vida e põe-se a escrever num inglês truncado e entrecortado, isso sim, é de irritar profundamente. Orlando, numa das tertúlias quase diárias, citou-me exemplo de escritores que abandonaram o inglês em detrimento da sua língua própria. Evidentemente que eram todos escritores que haviam abandonado inclusive a terra de onde eram originários, como Vladimir Nabokov.
O que me dói é que o inglês não está aparecendo como uma nova língua de cultura - como fora o francês até a década de 1960 e ainda o é em parte, ou o italiano - o inglês que é ensinado é um inglês voltado às ciências argentárias única e exclusivamente. Ensina-se nas escolas como perguntar o preço das coisas, como pechinchar, mas não se toca em uma única linha de Shakespeare ou Chaucer. Pergunte-se a alguém desses cursos sobre o antigo pronome thou e não obterá resposta alguma. Além do mais, aprendem esse inglês de mercearia - da Mercearia Universal que estamos a transformar o mundo! - e viram as costas ao vernáculo. Notórios são os erros de ortografia e pronúncia, os pronomes mal colocados, os verbos mal conjugados e por aí vai.
Mais recentemente - coisa de já uns anos - surgiu uma escola de inglês em São Paulo que «propaga» o inglês como língua universal (para mim, o idioma que tinha - e tem - esse epíteto é o esperanto) e isso muito me assusta. É o poder econômico sobrepondo-se às preferências lingüísticas pessoais. Aprende-se inglês porque é tido como necessário. O que me consola é que assim, o inglês jamais se tornará língua de cultura - não porque não mereça, mas pelo verniz comercial que lhe aplicam: será sempre um patoá para o comércio, como fora a língua geral nas costas brasileiras à época colonial. Precisamos do inglês somente para ler alguns manuais de instrução de aparelhos eletrodomésticos e entender algmas mensagens de erro de computador. Nada mais.
Creio solidamente que o inglês não substituirá as línguas nacionais, como é propalado por alguns - ouvi alguém comentar tal dito de um lingüísta. Tanto como não creio que em 50 anos estaremos falando um amálgama de castelhano e português - como deve ter dito algum outro.

E espero ainda não terminar como Catão, o velho.

P. S.: faço ressaltar ainda a minha preferência para a pronúncia do latim, sendo para mim, a eclesiastica (ou italiana) preferível à reconstituída (usada nas Universidades).

quinta-feira, junho 1

317. Curta fábula urbana (V)

Pavão

Era uma pessoa normal. Quem o visse andando pela rua, jamais imaginaria que a tirania tinha ali morada. Era um senhor de meia-idade, pendendo para a terceira, cabelos grisalhos e aspecto venerando. Mas se vocês conhecessem os trabalham com ele, ah!, seria toda uma outra história: era chefe de uma repartição pública. Mandava e desmandava, berrava, fazia os funcionários ficarem nervosos com procedimentos que eram cambiantes a cada minuto. Era detestado e ridicularizado às escondidas. Porém, interpretava isso como medo respeitoso que lhe tinham. Era tão imbuído de tal, que caminhava pela rua, ali, como ele vem agora, descendo a ladeira, ao lado da loja de frios, veja como ele vem altivo e soberbo e no seu rosto está estampada uma expressão fátua de superioridade. Anda rígido como se marchasse – e com isso propala que teve educação militar! – olhando do alto, lançando olhares soberbos e inquisidores ao padeiro, ao jornaleiro. Ele pensava que os intimidava, mas os comerciantes daquela calçada consideravam-no um retardado mental de peso daqueles que somente o serviço público pode produzir. E veja que hoje ele vem ainda mais erguido e parece que o seu peito vai estourar de tanto que o estufa. Vai passando: acenou esnobemente para o padeiro, ignorou o açougueiro. Agora compra o jornal, pede com um grave tom de voz que lembra um filme de comédia, enche a mão do jornaleiro de moedas. Vai atravessar a rua e com a cabeça erguida como está, não vê o ônibus que vem a poucos metros de si. O ônibus tampouco consegue brecar, bate contra o chefe de repartição com uma velocidade considerável, manchando já a parte direita da grade de ventilação do ônibus com sangue; o baque é horrendo – sente-se, parece, ouvir o estalido dos ossos rompendo-se – e o corpo, jogado de volta para a calçada, bate fortemente contra o fundo da banca de jornal e cai, desfigurado e retorcido, junto do cesto de lixo. Em alguns minutos, enquanto não chega o carro do Instituto de Medicina Legal, o corpo vai pondo sangue aos borbotões. Começa a juntar-se a costumeira turbamulta, entre ela, alguns subordinados do finado burocrata. «É meu chefe…», alguém diz na aglomeração. Logo, o dono da voz destaca-se do grupo e vai rua abaixo, em direção ao escritório. Vai dar as boas-novas aos colegas. O sangue formou já uma poça e começa a escorrer pela sarjeta; afinal de contas, sangrava e morria mais ou menos como todo o mundo.